Agnus Dei: este pudor não é para religiosas

Pelo Pe Teodoro Medeiros

A força está na história, real, das religiosas que foram violentadas pelos russos na Polónia, em 1945. Mais exactamente, o que lhes aconteceu 9 meses depois. Na secção “filmes de temática religiosa”, é este o filme do momento.

Ou será o tema a segunda grande guerra? Porque este não pode nem deve sair de moda: não fosse a memória desse horror e decerto já teria sido repetido. A sétima arte tem dado o seu contributo para o conservar dessa consciência. Boa colheita, muitas vezes.

Em Roma, placas colocadas no chão, com o nome dos judeus mortos, recordam onde estes moravam e asseguram a realidade do horror. É importante. É uma educação e a comprová-lo está a existência de quem nega o Holocausto.

Recentemente, o Colégio Português de Roma foi declarado “Casa da Vida” pela comunidade dos hebreus, por ter abrigado muitos nesse período. Retoma a história; confirma-a. Só falta chegar a placa. Tal como o famoso Aristides Sousa Mendes, também o reitor de então foi já declarado “justo entre as nações”.

Voltando ao filme, a médica Mathilde é quem assistirá a partos e medos das religiosas. Jovem e bela mas muito contida, mostra a determinação necessária. No original, a médica era religiosa também, mas a realizadora soube evitar a armadilha de a identificar com as vítimas.

Dotado desses dois pontos de vista, o filme arranca, expondo fragilidades, revelando pequenos choques simbólicos (entre fé e ciência, valores e pragmatismo). As imagens são sóbrias e belas, tons de uma penumbra azulada a denunciar uma obra cuidada.

A ambição sente-se, é certo, pelo tema contundente, mas há mais: a disposição dos atores tem pretensões iconográficas (que é como quem diz, as imagens querem ser quadros). Nota-se no conveniente e inesperado “falar de costas quase viradas para o outro”. Ou então, lá está, fé e ciência em confronto.

O que há-de ser cada personagem é semeado sem disfarces. Por exemplo, o crime do personagem antagonista é indiciado à audiência uns bons vinte minutos antes de acontecer. Quem o prevê não o sabe (ou seria conivente): a intenção é chegar ao espectador, avisá-lo do que se segue. Só que este, ao olhar atrás, vê logo que engoliu duas ou três frases de engodo.

Mesmo assim, trata-se de um filme complexo e estimulante: mas sê-lo-á menos do que era pretendido. O confronto médica-convento cedo fica estafado, em regime de círculo desvirtuoso. E a disciplina rigorosa do mesmo não a impediria de assistir a um elevado número de eventos da vida interna?

Outro traço merece atenção: o olhar parece apostado em dessacralizar o feminino; fazê-lo quebrar, expor-lhe os fluidos, roubar-lhe o seu pudor. É um filme que requer maturidade… e, entre tais denúncias, surge a dúvida sobre o que se quer denunciar afinal.

Será só por subverter o ícone? Não é por aí que vai tremer ainda a coroa a Buñuel e à sua Viridiana. Ou, vá lá, ao Bernini do êxtase de Stª Teresa.

Anne Fontaine fala de um processo terapêutico para a Igreja Católica a partir do filme. Mas o que quer isso dizer? Adivinhar-se-ão novas situações destas? Vamos preveni-las por este meio? Ou não será que uma denúncia, se não tem uma função social, deixa de merecer esse nome?

Ou talvez aquelas crianças, agora crescidas, queiram contar aos seus netos como foi que nasceram? Não convence. E também não convence que se mude a identidade ainda ao amigo médico que aparece no filme. Ele é descrito como sendo judeu (na realidade era padre católico).

A alteração serve dois bons propósitos; dão-nos um romance sem consequência nem chama e vincam a imagem de tacanhez que se pretende colar às habitantes da comunidade religiosa. Estão sempre prontas a morder a mão de quem as cuida (sim, ele é hostilizado por essa razão).

Evidentemente, o ar estóico de Mathilde contrasta com a desorientação das irmãs: onde aquela é livre e direta nas palavras (pede que se esqueça Deus, por exemplo), estas são pessoas frágeis e sem respostas, errantes de problemas interiores que nunca irão resolver.

Seria um erro montar-se aqui uma apologética da fé. O que interessa é expor o dualismo desnecessário em que se cai, quase como que uma bengala para criar drama. Pela sua parte, a ausência (não total mas está lá) de sentimento da jovem não ajuda a “salvá-la”. É que o resultado é um rosto de postal que não se contagia. E, de facto, o filme termina com este rosto que ouve, imperturbável, as palavras reconhecidas das socorridas.

A violência sobre as mulheres existe: é uma das infelicidades maiores do mundo. Em Portugal, por exemplo, morrem todos os anos mais de 20. Nas guerras, raramente são poupadas (“no amor e na guerra vale tudo” diz Tom Waits). Pelo menos por enquanto, nunca será demais recordá-lo.

Que o filme de Fontaine toque esta realidade, é meritório e denúncia do horror que se esconde na palavra “guerra”. Pode ser terapêutico, no sentido de esclarecer quem acredita no poder das armas. E, quem sabe?, os Óscares têm queda para as grandes causas.

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