A idade da desinocência

 

Foto: Igreja Açores

Pelo padre José Júlio Rocha

Há quem diga, e é uma constatação generalizada, que a inocência é um atributo da infância. Eu não acredito. Bem, isto depende do conceito que temos de inocência. A palavra “inocente” significa aquele que não é capaz de fazer mal.” Ora bem. Todos nós andámos na escola, na catequese, na “escola da rua”, todos nós fomos crianças. E sabemos descaradamente que a criançada, quando quer, é bem capaz de fazer mal. Desde o “bullying” aos palavrões, dos amuos à pancadaria, da chantagem emocional ao prazer de fazer o mal pelo mal, todos nós já temos provas suficientes de que este tipo de inocência não é apanágio da infância. Quando se é inocente é-se para toda a vida. Em criança e em adulto.

Andava eu na inocência dos cinco anos quando me aconteceu uma coisa estranha. Ia eu da casa dos pais para a casa dos avós, no longínquo tempo em que as crianças daquela idade ainda andavam sozinhas pelos caminhos sem carros e percorri a canada do Biscoito, com o seu pavimento de terra batida, acastanhada, com miríades de pedras e pedrinhas a adornar o caminho. A dada altura, aí a uns cem metros da casa dos avós, sou cercado por um bando de canalha miúda, uns sete ou oito, da minha idade ou pouco mais velhos, que andavam à procura de sarilhos. Uma miúda, que pertencia ao grupo, apresenta-me um saquinho azul, tipo saco de pevides que se vendem nas touradas. O saco tinha grãos de trigo misturados com um pó azul: era veneno para ratos. Disse-me ela: “come.” Eu não comi. Neguei-me, porque sabia que era veneno. Tentei fugir mas fui apanhado pelos cabelos e dei com os quatro costados no chão, de costas. Ainda me virei, mas começaram os pontapés. Não sei quantos levei, eu para ali deitado, cercado de rapazes e raparigas, ainda levei um pontapé na cara e, de repente, todos desapareceram. Dei comigo encostado à parede de uma vinha, sujo, assustado, tinha feito chichi nos calções.

O motivo da fuga do bando de canalha foi o aparecimento milagroso de um salvador. Era o João Rocha, mais conhecido por “João Arranha”, filho do tio João e da tia Noémia, o rapaz mais velho daquela família de oito filhos. Hoje vive na Califórnia e já é avô, ainda primo meu, do lado da mãe e do pai, tem um daqueles bigodes largos à Bordalo Pinheiro, e o mais simpático sorriso de todos os Arranhas do mundo. Diga-se de passagem que eu também sou Arranha pelo lado de meu pai, e que os Arranhas, na Fonte do Bastardo e na Califórnia, são uma instituição. Meu querido primo João, que te ris como uma criança e és capaz de dar a camisa! Era ele que me assustava, por detrás de uma nespereira em casa dos avós, a sacudir os ramos, escondido, e a dizer com voz misteriosa: “Ó Júuuuuuuuuliiiio”, e eu fugia a sete pés.

O que se passou a seguir à cena em que eu fui vítima de pontapés é uma mistura das minhas memórias com as memórias do João. Eu lembro-me de ele me levantar do chão e me tomar pela mão. Ele lembra-se de me dizer: “Tens essa pomba toda mijada”, e de eu lhe responder: “Não é pomba, é pénis” (eu dizia pénizjz, porque era cioso na altura) “as pombas são d’aboá” (as pombas são de voar). E eu lembro-me de ele me ter levado a casa da avó, de eu ter entrado e visto minha avó sentada no estrado a bordar uma toalha do tamanho do mundo, e a perguntar-me quem é que me tinha trazido até ela. Eu respondi, que bem me lembro: “foi aquele homem que diz ‘ó Júuuuuuuuuliiiio’”.

Muitos anos mais tarde, enquanto dava a comunhão na minha missa nova (26 de Julho de 1992), aparece-me uma face ligeiramente conhecida, um sorriso largo, um bigode aparado que, enquanto estendia a mão para comungar, disse: “Ó Júuuuuuuuliiiio”, com o mesmo tom de vinte anos antes, desde quando já não o via. E vieram-me as lágrimas aos olhos.

A casa da avó era a mansão dos sonhos. Muitos dias fiquei lá, muitas noites lá passei, no remanso dos entardeceres suaves, dos anoiteceres íntimos, quando rezávamos aquelas jaculatórias antigas como o antigamente, quando fazíamos teatro e danças, eu e o Hernâni, em cima do estrado e diante da paciência infinita dos avós. Lembro-me de uma noite de temporal. Nós, que dormíamos no último quarto sobranceiro às matas, noite escura, ficámos encostados com as cabeças aos vidros da janela, a sentir o uivar tormentoso da tempestade, a ver como as solenes árvores, que conhecíamos bem, serem abanadas e esgaçadas pela violência do vento e a pensar que elas eram como pessoas, de pé, a agarrarem-se à vida contra a tormenta, ramos a rebentarem por todas as partes, as árvores choravam diante de nós. No outro dia avançámos floresta adentro e vimos os estragos. Muitas árvores feridas, a sangrar ramos pelo tronco abaixo, outras meio tombadas, despidas de folhas que atulhavam os pés, outras ainda caídas, a agonizar no chão, provavelmente com dores e a pedirem, silenciosamente, um socorro que não podíamos oferecer. Nem todas as árvores morrem de pé.

A avó Olívia escutava, com a paciência das avós, as nossas histórias e aventuras. Era uma mulher forte, física e mentalmente, senhora de si e capaz de nunca se irritar com nada deste mundo. Morreu em 1994, vítima de uma doença prolongada, eufemismo para o cancro.

No dia em que eu fui ordenado sacerdote, ela deixou de me tratar por tu. Chamava-me “senhor padre” coisa que me espantava. “Quem vai à missa nova de um neto tem o céu garantido”, dizia-me ela, provavelmente seguindo um ditado antigo. Tenho para mim que ela segurou a vida, apesar da longa doença, até à minha missa nova. Depois, quando a vida estava completa, deixou-se levar.

Daquela criançada que caiu em cima de mim numa tempestade de pontapés, ainda alguns andam por aqui, outros emigraram. Quase todos dizem ter orgulho em terem sido meus amigos na infância, amigos do padre Júlio. Inocentes são as pombas brancas… e não todas.

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