O mundo tem fome de paz… e de Deus

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Por Carmo Rodeia

O Papa Francisco disse no dia de Natal, na sua mensagem à cidade e ao mundo, a partir da Praça de São Pedro, que o mundo está a sofrer de uma “fome de paz” e pediu o fim imediato da guerra na Ucrânia, uma guerra “sem sentido” onde a “comida serve de arma”, mas também em todas as outras partes do mundo onde a destruição e o desrespeito pelos direitos humanos mais elementares atingem milhões de pessoas.

Na sua décima mensagem de Natal, desde que é Papa, Francisco voltou a um tema sobre o qual tem sido uma das vozes mais audíveis a pedir o fim das hostilidades. Mas na sua alocução de cerca de 10 minutos, a partir do balcão pontifício da Basílica de São Pedro, a frase mais emblemática que traduzo literalmente foi “há uma grave fome de paz em tantas regiões e outros teatros deste Terceira Guerra Mundial”, referindo-se aos conflitos e crises humanitárias no Médio Oriente, em Mianmar, Haiti ou em África.

A guerra é um mal em si. E as consequências que gera são igualmente graves, com particular destaque para o chamado “custo humano da guerra”, que ceifa vidas, destrói populações e modos de vida e provoca a fome, para além de desviar recursos financeiros que deveriam ser usados na construção da paz e não no armamento para alimentar a guerra.

A guerra na Ucrânia, cuja vizinhança torna mais presente e visível o conflito, num continente onde a democracia, o respeito pelo estado de direito e pelos direitos humanos tornaram-se dados adquiridos dificilmente questionáveis, agravou ainda mais esta situação de fome real, colocando povos inteiros em risco de fome, especialmente no Afeganistão e nos países do embora tardem em concretizar-se.

Mas, a poucos dias de fecharmos mais um ano, talvez o mais normal desde 2019, era de outra forme que vos gostaria de falar. Este ano tive ocasião de seguir várias celebrações de Natal transmitidas pelas televisões, desde a do Vaticano, mais vespertina do que Missa da noite de Natal à Missa do galo na Matriz da Horta, no Faial, que começou depois da uma da manhã, hora de lisboa, mais uma que nos Açores. E o que vi, igrejas razoavelmente vazias, levou-me a pensar no que está por detrás destas ausências reiteradas. A pandemia afastou pessoas que ainda não readquiriam o hábito de regressar à igreja, é possível; estava uma noite fria e desagradável em várias parte do país, é verdade mas nesta noite até os cristãos de celebrações sociais costumavam vestir a sua melhor roupa para ir à Missa do Galo… A interpelação não é motivada por qualquer ímpeto ritualista mas voltou a fazer soar-me campainhas: o que afasta as pessoas da Igreja, porque não sentem vontade de participar na Eucaristia? Há claramente um comodismo das pessoas mas há sobretudo um evidente desinteresse pelas questões religiosas e espirituais e já nem na segurança das tradições e dos ritos encontramos refúgio. À medida que as igrejas se vão esvaziando Jesus fica cada vez mais esquecido. Centrados nas nossas necessidades físicas, porque são palpáveis- um bébé quando tem fome chora; um adulto quando tem fome fica vulnerável- e a fome de Deus, como se expressa? Será que a sentimos como sentimos a fome de comida?

Atrever-me-ia a dizer que há pouca fome ou sede de Deus. Estamos tão centrados nas nossas necessidades materiais que dificilmente nos lembramos de que também temos outras necessidades. Não estou a julgar quem não crê. Estou antes a questionar-me sobre o que é que eu não consegui fazer para que outros, os que estão ao meu redor, não sintam um desejo de estar próximos de Jesus. Quantas vezes andamos atarefadíssimos com debates, agendas, eventos, estratégias e perdemos o verdadeiro programa proposto pelo Evangelho, como Francisco lhe chamou “o zelo da caridade, o ardor da gratuidade”.

“Somos chamados pelo Senhor a uma obra esplêndida, a trabalhar para que a sua casa seja cada vez mais acolhedora, para que cada um possa entrar e viver nela, para que a Igreja tenha as portas abertas a todos e ninguém se sinta tentado a concentrar-se apenas em olhar e trocar as fechaduras”, desafiou o Papa, lembrando que “Deus vê-se nos rostos e nos gestos de homens e mulheres transformados pela sua presença. E se os cristãos, em vez de irradiarem a alegria contagiante do Evangelho, voltaram a propor esquemas religiosos gastos, intelectualistas e moralistas, as pessoas não veem o Bom Pastor”.

Em vésperas de mais uma reunião de mais uma etapa do processo sinodal, que não é um congresso ou um evento, mas um caminho, gostava que pudéssemos zelar pelo reencontro de Jesus e da sua esposa, a Igreja e ultrapassássemos o cansaço em que vivemos, abrindo portas, escancarando janelas para vermos e sermos vistos, para que todos entrem, sobretudo os que têm sede e fome de Deus, seja em que estado for.

Bom ano de 2023!

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