O mundo ao contrário

Por Carmo Rodeia

Peço de empréstimo o título aos Xutos e Pontapés, porque  foi logo a frase  que me ocorreu depois de ter lido esta notícia: a primeira máquina com inteligência artificial da história a receber cidadania, deseja agora construir família e até já tem nome para a primeira filha.

Um mês depois de lhe ter sido concedida cidadania saudita, Sophia (uma robô), desenvolvida pela empresa de Hong Kong, “Hanson Robotics”, e inspirada na atriz Audrey Hepburn, quer ter filhos e afirma que a família é “algo muito importante”.

Sobre isto tudo apenas três notas objetivas.

A primeira: Sophia foi criada em Hong Kong. Ao contrário de muitas mulheres na Arábia Saudita, numa conferência sobre tecnologia em Riade pôde falar em palco sem consentimento de um homem, com a cabeça e a cara descobertas.

No país que prontamente a acolheu, mulheres já foram presas por apenas postarem nas redes sociais fotos suas sem essas peças de roupa, quanto mais aparecerem em público. Além disso, onde estava o guardião masculino de Sophia, como acontece com todas as mulheres no país, segundo a lei do guardião local. Na Arábia Saudita, todas as mulheres precisam que um homem seja responsável por algumas decisões básicas, como o direito de viajar, trabalhar e até fazer alguns procedimentos médicos . Na Arábia Saudita as mulheres não podem conduzir, abrir uma conta bancária, ir ao ginásio ou nadar numa piscina pública. Na melhor das hipóteses, e de uma forma simplista, imagino que, a esta hora, haverá muitas mulheres sauditas a dizerem: “Eu quero ser a Sophia e ter todos os meus direitos”.

Segundo: a Arábia saudita está entre os países com mais violações de direitos humanos, que recusa a cidadania aos seus mais de 9 milhões de trabalhadores estrangeiros, dificultando-lhes a mobilidade. Ainda assim concedeu este estatuto a uma máquina. Quando se pronunciou em público sobre a honra de ser uma cidadã do mundo a partir da Arábia Saudita  afirmou : “Como robô, os meus criadores ensinaram-me que sou uma cidadã do mundo, mas a Arábia Saudita era o único país do mundo a poder reconhecer isso”, explicou Sophia. O Seu criador, Ben Goertzel, defende que tornar um robô um cidadão do mundo faz parte de uma tentativa do governo saudita de abrir horizontes. Só se for com máquinas que pode controlar. E que não sejam pessoas de carne e osso. E muito menos mulheres.

Terceiro: A disseminação da inteligência artificial pode ainda estar no início, mas a sua ascensão poderá chegar muito mais cedo do que pensamos, dada a velocidade corrente dos avanços tecnológicos. Já não são histórias ficcionadas ou guiões de filmes. Estamos a aproximar-nos da era em que a capacidade das “máquinas pensantes” poderá ultrapassar a do cérebro humano. E, entre benefícios ou malefícios, há só uma questão que coloco: quem vai ser responsável por assegurar que os mais recentes desenvolvimentos tecnológicos não servirão para maus fins? Deixar a resolução desta equação a países como a Arábia Saudita parece-me uma decisão pouco menos do que insana.

A humanidade anda um pouco… ao contrário.

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