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Génesis

I. As origens do mundo e da humanidade

1. Da criação ao dilúvio

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A obra dos seis dias[i] – 1No princípio, Deus criou o céu e a terra[ii]. 2Ora, a terra estava vazia e vaga[iii], e as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava[iv] a superfície das águas.

3Deus disse: “Haja luz”, e houve luz. 4Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas.[v] 5Deus chamou à luz “dia” e às trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.[1]

6Deus disse: “Haja um firmamento[vi] no meio das águas e que ele separe as águas das águas”, e assim se fez. 7Deus fez[vii] o firmamento; que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento[2], 8e Deus chamou ao firmamento “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.

9Deus disse: “Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar[viii] e que apareça o continente”, e assim se fez. 10Deus chamou ao continente “terra” e à massa das águas “mares”, e Deus viu que isso era bom.

11Deus disse: “Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente”, e assim se fez. 12A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. 13Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia.

14Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos:[3] 15que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra”, e assim se fez. 16Deus fez os dois luzeiros maiores:[ix] o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite, e as estrelas.[4] 17Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, 18para comandar o dia e a noite, para separar a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom. 19Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.

20Deus disse: “Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu”, e assim se fez.[5] 21Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom. 22Deus os abençoou e disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra.” 23Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.

24Deus disse: “Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis[x] e feras segundo sua espécie”, e assim se fez. 25Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.

26Deus disse: “Façamos[xi] o homem[xii] à nossa imagem, como nossa semelhança,[xiii] e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras[xiv] e todos os répteis que rastejam sobre a terra”.[6]

 

27 Deus criou o homem à sua imagem,
imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.[7]

 

28Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.”[8] 29Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. 30A todas as feras, a todas as aves cio céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”,[xv] e assim se fez.[9] 31Deus viu tudo o que tinha feito: cera muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.[10]

 

2

1Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército.

2Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera.[11] 3Deus abençoou o sétimo dia e o santificou.’[xvi] pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação.[12]

4aEssa é a história[xvii] do céu e ela terra, quando foram criados.[13]

A formação do homem e da mulher[xviii] – 4bNo tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu,[14] 5não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo. 6Entretanto, um manancial[xix] subia da terra e regava toda a superfície cio solo.[15] 7Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila cio solo,[xx] insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.[xxi]

8Iahweh Deus plantou um jardim em Éden,[xxii] no oriente, e aí colocou o homem que modelara. 9Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida[xxiii] no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.[16] 10Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços.[xxiv][17] 11O primeiro chama-se Físon; rodeia toda a terra de Hévila, onde há ouro; 12é puro o ouro dessa terra na qual se encontram o bdélio[xxv] e a pedra de ônix. 13O segundo rio chama-se Geon: rodeia toda a terra de Cuch. 14O terceiro rio se chama Tigre: corre pelo oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. 15Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar. 16E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: “Podes comer de toda as árvores do jardim. 17Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal[xxvi] não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer.”[xxvii][18]

18Iahweh Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.”[xxviii] 19Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e toda as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse.[19] 20O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse. 21Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar.[xxix] 22Depois, costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher[xxx] e a trouxe ao homem.[20]

 

23 Então o homem exclamou:
“Esta, sim, é osso de meus ossos
e carne de minha carne!
Ela será chamada ‘mulher’,[xxxi]
porque foi tirada do homem!”

 

24Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne.[21]

25Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam.

 

3

O relato do paraíso – 1A serpente[xxxii] era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?”[22] 2A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto elas árvores do jardim. 3Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” 4A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! 5Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses,[xxxiii] versados no bem e no mal.”[23] 6A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. 7Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus;[xxxiv] e entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram.

8Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim.[24] 9Iahweh Deus chamou o homem: ”Onde estás?” disse ele. 10″Ouvi teu passo no jardim,” respondeu o homem; ” tive medo porque estou nu, e me escondi.” 11Ele retornou: “E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” 12O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” 13Iahweh Deus disse à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi.”[25]

 

14 Então Iahweh Deus disse à serpente:
“Porque fizeste isso
és maldita entre todos os animais domésticos
e todas as feras selvagens.
Caminharás sobre teu ventre
e comerás poeira
todos os dias de tua vida.[26]

15 Porei hostilidade entre ti e a mulher,
entre tua linhagem e a linhagem dela.
Ela te esmagará a cabeça
e tu lhe ferirás o calcanhar.”[xxxv][27]

16 À mulher ele disse:[xxxvi]
“Multiplicarei as dores de tuas gravidezes,
na dor darás à luz filhos.
Teu desejo te impelirá ao teu marido
e ele te dominará.”[28]

17 Ao homem, ele disse:
“Porque escutaste a voz de tua mulher
e comeste da árvore que eu te proibira comer,
maldito é o solo por causa de ti!
Com sofrimentos dele te nutrirás
todos os dias de tua vida.[29]

18 Ele produzirá para ti espinhos e cardos,
e comerás a erva dos campos.

19 Com o suor de teu rosto
comerás teu pão
até que retornes ao solo,
pois dele foste tirado.
Pois tu és pó
e ao pó tornarás.”[30]

 

20O homem chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os viventes.[xxxvii][31] 21Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu. 22Depois disse Iahweh Deus: “Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal,[xxxviii] que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!”[xxxix][32] 23E Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. 24Ele baniu o homem e colocou,[33] diante do jardim de Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante[xl] para guardar o caminho da árvore da vida.

[1] Gn 2,4-25; Jó 38-39; Sl 8: 104; Pr 8, 22-31; &Jo 1,1-3; Cl 1, 15-17; Hb 1,2-3; &2Cor 4, 6; Jo 8, 12+

[2] Gn 7,11+; Pr 8, 28

[3] Br 3,33-35; Jr 31,35; Is 40,26; Eclo 43,6-7

[4] Sl 136,7s

[5] Jó 12,7-12

[6] Gn 5,1; 5,3; 9,6; Sl 8,5-6; Eclo 17,3-4; Sb 2,23

[7] &1Cor 11,7; Cl 3,10; Ef 4,24; &Mt 19,4p

[8] Gn 8,17; 9,1; Sl 8,6-9; Eclo 17,2-4; Sb 9,2; 10,2; Tg 3,7

[9] Sl 104,14s

[10] Sl 104,24; Ecl 3,11; 7,29; Eclo 39,21; 39,33; 1Tm 4,4

[11] Ex 20,8+; &Ex 20,11; 31,12s

[12] &Hb 4,4

[13] Jr 10,11s

[14] Gn 1,1-2,4

[15] Ecl 3,20s; 12,7; &Sb 15,8; 15,11; Sl 104,29s; Jó 34,14s; 33,4; &1Cor 15,45

[16] Pr 3,18; Ap 1,7; 22,14

[17] Ez 47,1+; Ap 22,1-2; Jó 4,1+

[18] Rm 6,23

[19] Ecl 3,20

[20] &1Cor 11,8-9; &1Tm 2,13

[21] &Mt 19,5p; &Ef 5,31; &1Cor 6,16

[22] &Rm 5,12-21; Sb 2,24; &Jo 8,44; &Ap 12,9; 20,2

[23] Gn 2,17; 3,22

Is 14,14+

[24] 1Rs 19,12

[25] &2Cor 11,3

[26] Is 65,25

[27] &Ap 12,17

[28] &Ap 12,2; Gn 2,22+

[29] &Rm8,20; Os 4,3+; Is 11,6+

[30] Gn 2,7; 12,7; Jó 34,15; Sl 90,3; 104,29; Ecl 3,20

[31] &Rm 5,12

[32] Gn 2,17+

[33] &Ap 22,1s; &Ap 22,14

[i] Este relato, que procura contar as “origens do céu e da terra” é uma verdadeira “cosmogonia”, diferente de 2, 4b-25, que se pode qualificar de “antropogenia”: enquanto o segundo relato fala essencialmente da for­ mação do homem e da mulher, este pretende oferecer uma visão completa da origem dos seres segundo um plano refletido. Tudo vem à existência sob ordem de Deus e tudo é criado segundo uma ordem crescente de dignidade. Deus é anterior à criação e todos os seres dele receberam o dom da existência ou da vida. O homem e a mulher, criados à imagem de Deus, encontram-se no centro das obras criadas; pela vontade de Deus receberam o poder de dominar sobre os outros viventes. Este ensinamento é teológico, mas o aspeto mais imediatamente evidente, a origem de tudo em Deus, é duplicado por um segundo, o repouso do sétimo dia, do sábado. É para melhor transmitir este segundo ensinamento que o esquema da semana foi utilizado. Como há oito obras, elas são repartidas de maneira simétrica: há duas delas no terceiro e no sétimo dia. Assim, o “repouso” de Deus no sétimo dia torna-se o modelo que o homem deve imitar. Por trás do texto atual, da escola sacerdotal, há sem dúvida uma longa tradição; há também os conhecimentos da época em matéria científica. Se o ensinamento teológico faz parte da revelação divina, o mesmo não acontece com os dados ligados ao estado embrionário dos conhecimentos da época sobre o mundo.

[ii] Traduz-se também: “No princípio, quando Deus criou (ou quando Deus começou a criar) o céu e a terra, a terra estava…” As duas traduções  são gramaticalmente possíveis: a que adotamos, seguindo todas as antigas versões, respeita melhor a coerência do texto. A narrativa começa no v. 2; o v. 1 é título (uma “subscrição”), à maneira de 22, 1a ou 2Rs corresponde a conclusão de 2, 1 a que 2, 4a. Na linguagem bíblica, “o céu e a terra” designam a totalidade do universo ordenado, o resultado da criação. Esta é expressa pelo verbo ‘bara ‘, que é reservado à ação criadora de Deus, ou às suas intervenções brilhantes na história. Não é preciso ler aí a noção metafísica de criação sem que nada a preceda e possa ser considerada como matéria a partir da qual os seres pudessem ter sido formados, afirmação que ocorrerá apenas com 2Mc 7, 28, mas o texto afirma que houve um início: a criação não é um mito atemporal, ela é integrada à história da qual ela é o início absoluto.

[iii] Em hebraico: tohû e bohû, “o deserto e o vazio”, expressão que se tornou proverbial para toda falta de ordem, sobretudo quando é considerável. Esses termos, assim como o de “águas”, formam um quadro negativo em relação ao qual aparecerá a novidade da intervenção do Deus pessoal criando tudo por sua palavra. Este versículo descreve a situação de caos que precede a criação (2, 5).

[iv] Poder-se-ia traduzir por “grande vento” (ver também 8, que emprega o mesmo termo ruah). Não é preciso ver aí uma afirmação do papel criador do espírito de Deus. A ideia não aparece muito no Antigo Testamento. Aqui ela quebraria a descrição do caos e tiraria toda a novidade da intervenção de Deus. A intervenção em atos é provavelmente mais tradicional como ideia cosmogônica que a intervenção da palavra; aqui elas estão coordenadas.

[v] A luz é uma criação de Deus, as trevas não o são: elas são negação. A criação da luz é relatada em primeiro lugar porque a sucessão dos dias e das noites será o quadro em que se desenvolverá a obra criadora.

[vi] A “abóbada” aparente do céu era para os antigos semitas uma cúpula sólida, mas também uma tenda armada, retendo as águas superiores por suas aberturas; por elas Deus faz vir sobre a terra a chuva e a neve e faz também jorrar o dilúvio, 7, 11.

[vii] À criação pela palavra, “Deus disse”, acrescenta-se a criação pelo ato, “Deus fez” o firmamento, os astros (v. 16), os animais terrestres (v. 25), o homem (v. 26) . O autor sacerdotal integra assim à sua conceção mais espiritual da criação uma tradição antiga, paralela à da segunda narração (2,4b-25), em que Deus “fez” o céu e a terra, o homem e os animais.

[viii] Em vez de “lugar”, o grego leu ” massa”. O texto hebraico tem um sentido: as águas não ocuparão mais toda a superfície, elas terão seu lugar próprio e delimitado. Que a terra tenha já estado lá e não tenha de ser libertada faz parte da descrição do caos e, pois, da tradição recebida.

[ix] Os nomes são omitidos propositalmente: o Sol e a Lua, divinizado por todos os povos vizinhos, aqui são simples luzeiros que iluminam a terra e fixam o calendário. A divinização dos astros era tão tentadora que o autor deve ainda lhes reconhecer um papel de “poderes” (v. 16), podendo “comandar” (v. 18) o que raz parte também elas representações tradicionais.

[x] Lit.: “o que se arrasta” (“desliza”, v. 21): serpentes, lagartos, mas também insetos e animais pequenos.

[xi] Não parece ser um plural majestático e não se explica também pelo simples fato que o nome Eloim é um plural quanto à forma, pois ele é usado quase sempre como nome próprio do verdadeiro Deus e acompanhado normalmente de um verbo no singular. Embora seja raro em hebraico, parece que temos aqui um plural deliberativo: quando Deus, como em 11,7, ou não importa qual outra pessoa, fala consigo mesmo, a gramática hebraica parece aconselhar o emprego do plural. O grego (seguido pela Vulg.) do SL 8,6, retomado em Hb 2,7, compreendeu este texto como uma deliberação de Deus com sua corte celeste (cf. Is 6), com os anjos. E este plural era uma porta aberta para a interpretação dos Padres da Igreja, que viram já sugerido aqui o mistério da Trindade.

[xii] Nome coletivo, daí o plural “que eles dominem”.

[xiii] “Semelhança” parece atenuar o sentido de ” imagem”, excluindo a paridade. O termo concreto “imagem” implica uma similitude física, como entre Adão e seu filho (5,3). Essa relação com Deus separa o homem dos animais. Além disso, supõe uma similitude geral de natureza, mas o texto não diz em que precisamente consistem esta “imagem” e esta “semelhança”. Ser à imagem e a semelhança salienta o fato de que, dotado de inteligência e de vontade, o homem pode entrar ativamente em relação com Deus. Mas para outros o homem seria à imagem de Deus porque recebe dele um poder sobre os outros seres vivos: inteligência, vontade, poder; o homem é pessoa. Prepara assim uma revelação mais alta: participação da natureza pela graça.

[xiv] “todas as feras”, sir.; “toda a terra”, hebr.

[xv][xv] Imagem de uma idade de ouro, na qual o homem e os animais viveriam cm paz, alimentando-se de plantas. 9,3 marca o início de uma nova época.

[xvi] O sábado (shabbat) é uma instituição divina: o próprio Deus descansou (shabbat) nesse dia. Entretanto, o vocábulo shabbat é evitado aqui porque, segundo o autor sacerdotal, o sábado só será imposto no Sinai, onde se tornará o sinal da aliança (Ex 31,12-17). Mas, desde 11 criação, Deus deu um exemplo que o homem dever, imitar (Ex 20,11; 31,17).

[xvii] Em hebraico tôledôt, propriamente “descendência”, depois história de um antepassado e de sua linhagem (c f. 6,9: 25,19; 37,2). Pelo emprego dessa palavra aqui, a criação é demitizada: é o começo da história e não é mais, como na Suméria e no Egito, sequência de gerações divinas.

[xviii] A sessão 2,4b-3,24 faz parte das tradições javistas. Ela utiliza sistematicamente o nome divino composto ” Iahweh Deus” (Iahweh Elohim) que é muito raro. Este duplo título poderia ser o fato de uma revisão tardia (c f. grego). Mais que um “segundo relato da criação” (pois o paralelismo com 1,l-2,4a é apenas parcial), o que temos aqui é a narração da formação do homem e da mulher (os animais são formados apenas como uma tentativa para encontrar para o homem uma “auxiliar correspondente”) unida a uma outra sobre o paraíso e a queda. Há, portanto, ao menos duas grandes tradições, a da criação do homem e da mulher, a “antropogonia” (vv. 4b-8 e 18-24), e a do paraíso e da queda (2,9.15- 16; 3). Provavelmente o que ajudou o autor a reuni -la é o fato de que as duas falam de um jardim, ainda que as proposições pareçam um pouco diferentes: solo que o homem deve cultivar (relação entre 2,8 e a descrição do ” antes”, v. 6), jardim de delícias que o homem não precisa cultivar (trabalhar o solo com fadiga faz parte da punição infligida, 3,17). Mas há uma parte do texto atual que serve para unificar os elementos dos dois relatos (e até motivos isolados, como o dos quatro rios, 2,10-14). O autor que unificou tudo isso conheceu até variantes; elas aparecem por locais, assim quando ficamos sabendo que Deus quer guardar a entrada do jardim para que o homem não possa aí aceder (3,22.24), passagem curta sem dúvida preparada pela menção conjunta das duas árvores em 2,9. Aqui aparentemente não se trata de um castigo para o homem por causa de uma falta já cometida, mas de uma medida preventiva. O conjunto forma um relato colorido e popular. Se o homem e a mulher (e até sem dúvida o resto da criação, ao menos por implicação, e não somente os animais de que fala 2,18-20) têm sua origem em Deus, o conjunto do relato quer sobretudo explicar as limitações do homem e da mulher (3,16-19). Se há limitação, e se ela não se identifica com o fato de ser criatura, ela não pode vi r de Deus, a menos que seja castigo infligido por causa de falta grave da parte do homem e da mulher. Ora, a falta, sendo co extensiva ao conjunto da humanidade deve se situar na origem, no casal que não é somente o primeiro do ponto de vista cronológico, mas ainda o princípio de toda a humanidade. Se esse texto guarda uma relação com o dogma do pecado original, sua expressão é simbólica. Esta própria expressão simbólica está na fonte das afirmações ulteriores da Escritura em relação com o dogma do pecado das origens: não preciso procurar aqui tudo o que se leu na sequência quer se trate das ” releituras bíblicas”, por exemplo da de Paulo (Rm 5,l2s; 1Cor 15,21-22), quer de formulações dogmáticas da Igreja.

[xix] Termo hebraico (‘ed) cuja significação permanece incerta e que se traduz segundo o contexto, levando em conta Jó 6,27, pelo fato que “subir” se diz em Nm 21,17 de uma fonte de água e paralelo semíticos.

[xx] O homem, ‘adam, vem do solo, ‘adamah (cf. 3,19). Este nome coletivo tornar-se-á o nome próprio do primeiro ser humano, Adão (cf. 4,25; 5,1.3).

[xxi] É o termo nefesh, que designa o ser animado por um sopro vital (mani festado também pelo “espírito”, ruah: 6,17+; Is 11,2+; cf. Sl 6,5+).

[xxii] “Jardim” é traduzido por ” paraíso” na versão grega, e depois em toda a tradição. ” Éden” é nome geográfico que foge a qualquer localização, e inicialmente pode ter tido o significado de “estepe”: poderia ser comparado ao bit adini assírio-babilónico, região à margem do Eufrates de que falam também alguns textos bíblicos (Am 1,5; 2Rs 19,12; Is 37,12; Ez 27,23). Mas os israelitas interpretaram a palavra segundo o hebraico, ” delícias”, raiz ‘dn. A distinção entre Éden e o jardim, expressa aqui e no v. 10, se esfuma em seguida: fala-se do ” jardim de Éden” (v. 15; 3,23.24). Em Ez 28,13 e 31,9, “Éden é o jardim de Deus”, e em Is 51,3, Éden, o “jardim de Iahweh”, é o oposto ao deserto e à estepe.

[xxiii] Símbolo da imortalidade (cf. 3,22+). Sobre a árvore do conhecimento do bem e do mal, cf. v. 17+.

[xxiv] Os vv.10-14 são um parêntesis, provavelmente introduzido pelo próprio autor, que utilizava velhas noções sobre a configuração da terra. Sua intenção não é localizar o jardim do Éden, e sim mostrar que os grandes rios, que são as artérias vitais das quatro regiões do mundo, têm sua fonte no paraíso. O Tigre e o Eufrates são muito conhecidos e têm sua fonte nos montes da Armênia, mas o Fison e o Geon são desconhecidos. Hévila é, segundo Gn 10,29, uma região da Arábia, e Cuch em outro lugar designa a Etiópia, mas não é seguro que esses dois nomes devam ser tomados aqui em sentido habitual.

[xxv] Goma-resina aromática.

[xxvi] Este conhecimento é um privilégio que Deus se reserva e que o homem usurpará pelo pecado (3,5.22). Não se trata, pois, nem da onisciência, que o homem decaído não possui, nem cio discernimento moral, que o homem inocente já tinha e que Deus não pode recusar à sua criatura racional. É a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal, e de agir consequentemente: reivindicação de autonomia moral pela qual o homem nega seu estado de criatura (cf. Is 5,20). O primeiro pecado foi um atentado à soberania de Deus, um pecado de orgulho. Esta revolta exprimiu-se concretamente pela transgressão de um preceito estabelecido por Deus e representado sob a imagem do fruto proibido.

[xxvii] Ou “deverás morrer”.

[xxviii] O relato da criação da mulher (vv. 18-24) [25 é apenas uma transição para 3], é apenas a sequência lógica de 15-17,pois aí ” homem”(v. 16; cf. 3,22) é tomado coletivamente e inclui o homem e a mulher. Tem todavia sua função num relato de criação do homem. Do ponto de vista da tradição, 18-24 são a sequência lógica do v. 7 (e 8), também se a passagem agora está um pouco distante por causa do arranjo do autor, que escolheu contar a formação da mulher antes do momento em que ela terá papel ativo na transgressão.

[xxix] A carne (basar) é primeiramente, no animal ou no homem, a “vianda”, os músculos (41,2-4; Ex 4,7; Jó 2,5). É também o corpo inteiro (Nm 8,7; 1Rs 21,27; 2Rs 6,30) e por isso o vínculo familiar (2,23; 29,14; 37,27), ou seja, a humanidade ou conjunto dos seres vivos (“toda a carne”, 6,17.19; Sl 136,25; Is 40,5-6). A alma (2,7+; Sl 6,5+) ou espírito (6,17+) animam a carne sem se adicionar a ela, tornando-a viva. Não obstante, frequentemente “carne” sublinha o que há de frágil e perecível no homem (6,3; Sl 56,5; Is 40,6; Jr 17,5); e pouco a pouco percebe-se certa oposição entre os dois aspetos do homem vivo (Sl 78,39; Ecl 12,7; Is 31,3; cf. também Sb 8,19; 9,15+). O hebraico não tem um vocábulo para dizer “corpo”: o NT suprirá essa lacuna usando soma ao lado de sarx (cf. Rm 7,5+; 7,24+).

[xxx] Expressão que usa a imagem da relação que liga o homem e a mulher (v. 23) e que os une no casamento (v. 24).

[xxxi] O hebraico joga com as palavras ‘îsha’î mulher”, e ‘îsh’, “homem”.

[xxxii] A serpente serve aqui de máscara para um ser hostil a Deus e inimigo do homem. Nela a Sabedoria, e depois o NT e toda a tradição cristã, reconheceram o Adversário, o Diabo (c f. Jó 1,6+). Em favor desta identificação nota-se o fato de que a serpente toma a contrapartida da proibição divina, como se Deus quisesse esconder do homem e da mulher o que aconteceria se eles comessem o fruto proibido; ela está todavia em tensão com a descrição que a apresenta corno um simples animal, mas astuto, e com a condenação de caminhar sobre o seu ventre e comer o pó (v. 14). Talvez a intervenção de um animal astuto como tentador é apenas um modo de sugerir que o homem e a mulher só possam, eles próprios, censurar sua transgressão. O autor apresentaria como um diálogo entre a serpente e a mulher o que é o resultado de um processo humano: a atração do fruto proibido leva à transgressão; 3,6 descreve esse processo humano.

[xxxiii] Deve-se notar a diferença de perspetiva em relação a 1,26-27: lá o próprio Deus cri a o homem e a mulher a sua imagem, aqui “ser corno deuses” (ou “como Deus”) seria uma empresa humana.

[xxxiv] O que o homem e a mulher percebem aparece corno algo de inconveniente. Na consciência da sua nudez há já uma manifestação da desordem que o pecado introduz na harmonia da criação.

[xxxv] Este versículo constata a hostilidade fundamental entre a serpente e a humanidade, mas deixa entrever a vitória final da humanidade: é um primeiro clarão de salvação, ou “Protoevangelho”. A tradução grega, começando a última frase com um pronome masculino, atribui essa vitória não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos fi lhos da mulher; dessa forma é estimulada a interpretação messiânica já presente na tradição judaica antiga, depois retomada e explicitada por muitos Padres da Igreja. Com o messias, sua mãe é implicada, e a interpretação mariológica da tradução latina ipsa conteret tornou-se tradicional na Igreja.

[xxxvi] A condenação divina atinge os culpados, e a vida do homem e da mulher é profundamente afetada por isso: a mulher enquanto mãe e esposa e o homem como trabalhador sofrem as consequências de sua transgressão. Não se pode apressadamente concluir que sem o pecado a situação do homem e da mulher teria sido diferente, mas há uma perceção profunda das consequências da transgressão: o pecado do homem abala a ordem quer ida por Deus. A mulher, sedutora para o homem, não é mais a associada e a igual deste (2,18-24), poi s o homem age como senhor e submete a mulher. Por sua vez, o homem deve se afadigar para extrair sua subsistência de um solo hostil que está longe de assemelhar-se ao jardim de Éden. Estas situações penosas são a sorte do ser humano, mas para que seja claramente deduzido o ensinamento de uma falta hereditária, será preciso esperar que são Paulo ponha em para lelo a solidariedade de todos em Cristo salvador e em Adão, o pecador (Rm 5).

[xxxvii] Etimologia popular: o nome de Eva, Havvah, é explicado pela raiz hayah, “viver”.

[xxxviii] O homem pecador se constituiu juiz do bem e do mal (2,17+), o que é privilégio de Deus.

[xxxix] A árvore da vida fora mencionada em 2,9 ao lado da árvore do conhecimento do bem e do mal. Aqui se trataria de impedir que o homem se aposse dessa árvore e dela coma; de onde a vigilância do v. 24. É uma tradição para lela à da árvore do conhecimento do bem e elo mal, mas serve ao desígnio do autor: a busca da imortalidade está ao mesmo tempo inscrita no coração do homem e fora de suas possibilidades. É uma graça de que a palavra de Deus fará eco quando chegar o momento. O Paraíso perdido pela falta do homem é a imagem do Paraíso reencontrado pela graça de Deus.

[xl] Os guardiões do Paraíso não são querubins com uma espada (empréstimo do imaginário babilônico e assírio, cf. Ex 25,18+), mas antes os querubins e a “chama da espada fulgurante”. O afastamento do Paraíso traduz cm termos de espaço o afastamento ele Deus: no jardim em que o homem tinha sido colocado (2,15), o próprio Deus vinha tomar a brisa da tarde! (3,8).

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