Obra já dura há 15 meses, mas devolverá à comunidade um retábulo recuperado e próximo do original
A cortina vermelha a toda a largura da Capela do Altar-mor no Santuário de Nossa Senhora dos Milagres, conhecido como Santuário da Serreta, por ser a designação toponímica do lugar desta paróquia-santuário, na ilha Terceira, antecipa a instalação de um estaleiro que já está montado há 15 meses, não por qualquer capricho mas por força do volume de trabalho que foi aumentando à medida que a intervenção começou a ser feita.
“Inicialmente o trabalho circunscrevia-se a uma recuperação de uma parcela do retábulo do lado da epístola, onde havia um `descaimento´ de 3cm, mas depois verificou-se que era precisa uma intervenção total no retábulo, que já se encontrava em risco de colapsar” começa por explicar David Silva, da Acroarte, ateliê de conservação e restauro de São Jorge, que é responsável pelos trabalhos que estão a ser desenvolvidos e que hoje o sítio Igreja Açores visitou.
“Muitos elementos estruturais encontravam-se em elevado estado de degradação e a maioria dos elementos estruturais de ligação em metal estavam completamente corroídos, provocando zonas com descaimentos muito significativos”, prossegue sublinhando a urgência de uma intervenção que só tem como única finalidade devolver em condições este património “absolutamente fundamental” na igreja pois o retábulo “é uma peça importantíssima; é o pano de fundo de Nossa Senhora dos Milagres e é toda uma simbologia sobre a envolvência do mistério da nossa fé” acrescenta o reitor e pároco, padre João Pires.
No próximo dia 7 de maio, assinala-se o 19º aniversário da elevação desta paróquia a Santuário e 18 anos da dedicação da Igreja, depois das obras efetuadas.
“É um momento também de `prestação de contas´ sobre o que estamos aqui a fazer” acrescenta o sacerdote que espera poder contar com a presença de todos, primeiro na Missa, às 19h30, presidida pelo bispo de Angra, D. Armando Esteves Domingues e depois na conferência de Fagundes Duarte, um serretense que irá abordar o valor da preservação e conservação do património como garante da identidade de um povo, em especial o deste lugar. A Igreja de Nossa Senhora dos Milagres é um templo ligado à história da ilha Terceira.
A `festa da Serreta´, com a sua segunda feira dedicada às famílias, é a mais importante festa de verão da ilha Terceira. Segundo os registos históricos, tem origem no século XVII e está ligada a vários momentos difíceis da história do arquipélago e de Portugal, com as comunidades a virarem a sua esperança para Maria. De modo particular destaca-se o período em que Portugal se viu envolvido na guerra entre a França e a Espanha, contra Inglaterra. Numa altura em que a Ilha Terceira não tinha qualquer tipo de fortificações e estava quase indefesa, a esperança das autoridades e das pessoas voltou-se para a intercessão de Nossa Senhora dos Milagres, cuja imagem estava colocada na igreja das Doze Ribeiras. Ficou a promessa de que, caso a ilha não sofresse qualquer investida inimiga, a comunidade iria promover uma festa anual em honra de Nossa Senhora, o que veio a acontecer.
A primeira celebração dedicada a Nossa Senhora dos Milagres aconteceu a 11 de setembro de 1764 mas esta devoção afirmou-se definitivamente a partir de 1842. A construção da igreja começou em 1819, liderada pelo general Francisco António de Araújo, e foi concluída em 1842.
Cerca de 15 mil peregrinos acorrem anualmente a este lugar e são eles que fazem a sua história. Até a das obras, que estão a ser desenvolvidas neste momento.
“Foi uma opção nossa: contratarmos esta empresa, que tem também uma ligação a este lugar e sermos nós a custear a obra. É aos serretenses e aos peregrinos, e também a algumas entidades, que temos de agradecer esta intervenção” refere o reitor, padre João Pires, que quer acabar tudo com as contas em dia.
“Os recursos não são inesgotáveis e nós temos de acabar esta obra” informa.
“O passo seguinte é o levantamento de repintes pois quando se retiraram os ornatos para recuperação, verificou-se que havia pinturas originais que estavam tapadas com várias camadas de tinta que não só não era a original como até camuflou a original, feita à base de marmoreados como era típico das igrejas do final do século XIX” explica David Silva, da Acroarte.
A opção da empresa foi erguer o estaleiro no próprio espaço de intervenção permitindo assim à comunidade acompanhar os trabalhos.
“No início as pessoas pensavam que iriam ser umas semanas, talvez uns meses, e depois perceberam que afinal seria mais tempo e isso provocou algumas interrogações” avança o padre João Pires, que elogia o envolvimento da população no seguimento dos trabalhos.
“Sempre que têm duvidas perguntam e vêem aqui; estão também implicados com toda esta dinâmica” acrescenta destacando que a iniciativa que se seguirá à celebração do dia 7 de maio também tem esse intuito: “prestar contas do que estamos a fazer e mostrar como este trabalho é exigente, minucioso, mas indispensável para devolver em condições este elemento importantíssimo à nossa igreja”.
“Muitas pessoas até nos abriram os albuns de fotografias de família para vermos e estudarmos como era a Igreja antigamente”, refere ainda.
“O problema principal foi o apodrecimento dos diversos elementos de ligação, que não estavam visíveis e ao desmontar o retábulo é que se foi vendo. Quando tentámos nivelar o retábulo percebeu-se que o descaimento acentuado num dos lados se devia ao apodrecimento da estrutura interna e por isso tivemos de intervir no retábulo todo” explica o conservador, que se viu obrigado a retirar tudo o que era metal e substituir por madeira tratada, como deve ser. E garante: quando a obra chegar ao fim, “vão poder ver um retábulo direito, aprumado com a sua policromia inicial”, sem artificialismos ou pastiches.
O exemplo mais emblemático deste restauro, que permitirá ao retábulo regressar à traça original, é o trono, cheio de nuvens, anjos e sol, que não se viam com as sucessivas camadas de tinta.
Outra descoberta foi o sepulcro do Senhor, cuja estrutura de madeira foi encontrada nas arrumações da Sacristia e que agora está a ser recuperada para devolver ao retábulo mais este elemento importante.
A consolidação do retábulo, com vigas de metal, foi outra das opções, com a correspondente construção de uma escada de metal e madeira que ajuda à mobilidade por detrás do Altar-mor e consolida o suporte do camarim.
“A humidade deste lugar aconselha a esta opção” refere David Silva que explica, ainda, todo o trabalho de desinfestação contra o caruncho e eventuais térmitas, em toda a estrutura de madeira.
Esta igreja foi inaugurada em 1907 e durante o sismo de 80 sofreu danos estruturais com a queda da torre. Depois da sua recuperação, a principal obra já foi feita pelo anterior reitor, que procurou resolver todas as infiltrações no teto da Igreja.
A festa de Nossa Senhora dos Milagres acontece no segundo fim de semana de setembro e é precedida por um novenário. Ainda não será este ano que os andaimes vão desaparecer, mas a promessa é que na próxima Páscoa tudo esteja concluído.