Quatro vírgulas perdidas por aí

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/CR

Vírgula 1: Igreja para mim é Jesus. Isto não significa desapreciar a Igreja e a sua história, a sua inserção no mundo, adaptando, constante e criativamente, a mensagem de Cristo ao tempo em que vai vivendo. Mas a referência suprema é Jesus e o Seu Evangelho. No entanto, Jesus não foi um sistematizador nem promulgou nenhum código de direito ou de conduta. O certo é que, durante os primeiros trezentos anos, as heresias alastraram e dividiram a Igreja, difundindo a confusão entre os crentes e foi necessário elaborar um credo que estabelecesse os princípios fundamentais para se pertencer à verdadeira Igreja. Em 325, faz agora 1700 anos, o Concílio de Niceia estabeleceu as regras, complementadas mais tarde em Constantinopla, do Credo que ainda hoje rezamos na missa. O maior problema que esta solução acarretou foi que, para se ser da Igreja, a referência foi sendo cada vez menos o Evangelho e cada vez mais o Concílio de Niceia. Nessa altura, já a Igreja não era perseguida, já os imperadores lhe tinham dado regalias de religião do Império, já a tentação do poder, dos papas como imperadores, dos bispos como príncipes, do clero como classe social de topo, era evidente. Niceia foi a ordem para evitar o caos.  E, no entanto, a linha mestra da Igreja foi deixando, paulatinamente, de ser a misericórdia e o carisma para se tornar, cada vez mais, na justiça e na instituição. 1630 anos depois de Niceia, o Concílio Vaticano II foi uma “refontalização”, um regresso às fontes, aos Evangelhos, a Jesus Cristo como marca indelével do Povo de Deus. O primado da misericórdia deve prevalecer sobre a justiça, ou melhor, a justiça deve ser misericórdia. Não é por acaso que Jesus Cristo disse que “quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita” (Mt 6, 3). Tendo em conta que, na imagética judaica do tempo, a mão direita significava a misericórdia e a esquerda a justiça, já estamos entendidos.

Vírgula 2: mudança radical de assunto. Agora é Portugal. Um dos nossos problemas endémicos é o dinheiro. Nunca o soubemos ter, poupar ou pôr a render nos 900 anos de portugalidade. Tivéssemos mais divisa e muitos problemas não o seriam, até porque o dinheiro não trás felicidade a ninguém, mas a falta dele trás infelicidade. Tomemos como exemplo o SNS: ninguém estanca a sangria de médicos e enfermeiros a emigrar para melhores destinos, as urgências a rebentar pelas costuras, as horas infinitas de espera, a pouca qualidade do serviço público de saúde, as maternidades fechadas, crianças a morrer por não chegarem a tempo, todos os problemas que a falta de dinheiro traz e que conhecemos sobremaneira. Por mais que os nossos governos se esforcem, é muito difícil encontrar verba para colmatar as lacunas do SNS, só para falar do SNS. Entretanto, chegou Trump à Europa para dar o seu pé a beijar e Portugal, sem tossir nem mugir, sem levantar a orelha, toca a desembolsar 1200 milhões de euros para a defesa. Prioridades…

Vírgula 3: Não consigo, não posso nem quero ficar em silêncio perante o massacre de Gaza. Podem dizer-me que me preocupe antes com o terrorismo dos taliban no Afeganistão, mas, no nosso pensamento ocidental, o regime taliban é consensualmente terrorista, enquanto Israel pertence a um número de países que consideramos – ainda – democracias ocidentais, com valores semelhantes aos nossos. Por isso, não é possível justificar que, para anular uma organização terrorista, se tenha matado mais de 50 mil pessoas inocentes, de entre as quais 20 mil crianças. A não ser que tenhamos a mesma opinião dos impossíveis judeus ortodoxos, para quem em cada muçulmano habita um terrorista. Trump veio ajudar à festa, propondo a deportação de dois milhões de palestinianos para África, fazendo da Faixa de Gaza uma riviera, ideia que Göbbels aplaudiria. Já me acusaram de antissemita por me indignar com o assassínio em massa perpetrado por Israel. É simples: achar que o governo de Israel e o seu primeiro ministro, o injurioso Bibi Netanyahu, são criminosos quanto o Hamas não é ser antissemita.

Vírgula 4: Elon Musk acusou Trump de estar envolvido na lista de Epstein, mais famosa nos EUA do que a de Schindler. Essa lista envolve nomes de pessoas importantes que supostamente estão associadas ao magnata americano e ao abuso de menores em grande escala, um escândalo que aterrorizou a América. Perante a suspeita de que é alvo, qualquer pessoa minimamente inocente faria tudo para a lista ser publicada com todos os detalhes, para provar a sua inocência. Trump e o seu staff decidiram fazer exatamente o contrário: manter a lista secreta. Já não é só suspeita, já tem atmosfera de certeza…

O mais patético é que o universo MAGA aplaude.

Fim.

Do mundo.

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