Religião e cinema, um namoro feliz, parte I

Pelo padre Teodoro Medeiros

 

A relação entre o cinema e a religião é antiga, sendo que a primeira produção sobre Cristo pode remontar a 1899 ou 1902. Essa incerteza tem que ver com o fato desses filmes terem cenas idênticas, o que levanta todo o tipo de hipóteses. Seja como for, o Jesus de celuloide é quase tão antigo como a própria arte das imagens em movimento. Assim como as estórias de Sansão ou de José, ou de Moisés.

A tendência mantém-se até aos nossos dias, como demonstram os (repetidos) rumores de um novo filme de Mel Gibson sobre Jesus. Mas é preciso notar que falamos aí apenas de um pequeno ramo de uma árvore maior: é que os filmes bíblicos, épicos ou não, constituem uma ínfima parte do âmbito religioso na sétima arte. Basta pensarmos em obras centradas na Igreja Católica em vez da Bíblia: os missionários, padres, bispos e cardeais que populam muitos filmes.

Nesse campo, Robert de Niro já surgiu como ministro ordenado mais do que uma vez (e participou em A Missão). Mas, se quisermos chegar já a uma conclusão prévia, a relação entre cinema e religião estende-se até a muitos casos que não têm nada a ver com ela. O motivo desta realidade é estrutural, ou não tivesse existido um teórico literário grego, de seu nome Aristóteles, e o seu ensaio Poética.

Para os nossos propósitos, basta recordar que a Poética distingue entre a trama de resolução e de revelação: na primeira, o herói alcança um objetivo (como vencer uma batalha) e então a narrativa acaba, atinge o seu fim; na segunda o ponto final é quando se descobre quem é o herói (como no caso de Édipo, a sua vitória serve apenas para confirmar a previsão do oráculo: ele é o homem que casou com a mãe depois de matar o pai).

Ambas tramas podem ter final feliz (o que Aristóteles chama de comédia): a representação deste género é um U, significando que as coisas começam bem, conhecem dificuldades (a curva descendente do U), mas tudo acaba em tom positivo (o elevar final na letra U). O contrário acontece na tragédia: o U está invertido, porque as coisas começam e acabam mal (O Prometeu Agrilhoado é um bom exemplo, ou Ícaro).

A distinção entre revelação e resolução resume a identidade de cada estória, real ou ficcionada, que se conte, todas encaixam num caso ou no outro, ou até nos dois (como se pode dizer de Édipo: quando alcança o seu objetivo ele torna-se, para sempre, o Édipo que conhecemos). Quando vemos um documentário sobre um rapaz que se tornou rei ou Papa (ou Moisés), trata-se do mesmo fenómeno.

As tramas de revelação são mais envolventes: na resolução o personagem já está plenamente realizado e perde interesse. É por esse motivo que ver Elias fazer vários milagres torna-se cansativo (ou o Indiana Jones). Quando o personagem se torna previsível, quando perde a sua aura de mistério, a estória ganha rotina. As grandes sagas do cinema tentam fugir a isto, mas nem sempre conseguem (Rocky e O Senhor dos Anéis já não têm nada de novo a apresentar).

Mas Aristóteles ainda não acabou a sua lição: nas boas estórias, no início tudo é possível, a meio tudo é provável, no último ato tudo é necessário (como se fosse uma ciência exata). No último ato, não deve haver exposição, explicação: o ouvinte já deve conhecer as pessoas, viver a estória por dentro, como se fosse sua. Para o evento decisivo, o ponto alto da estória, que leva à sua inevitável e satisfatória conclusão, existem dois nomes.

No caso da estória de resolução, esse ponto chama-se peripécia: o exército inimigo ataca finalmente e é a partir desse ponto que nada volta a ser como antes, só pode haver vitória ou derrota. Mas, nas estruturas centradas sobre a revelação, esse momento chama-se reconhecimento (anagnorisis). Recordemos Ulisses a quem a criada reconhece na cicatriz antiga, a partir desse momento a estória tem o tempo contado (não há mesmo mais para contar, não pode haver).

É com estas linhas que se cosem até os Evangelhos: não porque estejam a copiar, mas simplesmente porque a estória contada é rica, atrativa, irresistível, de alto nível narrativo e até dramatúrgico. Quem é Jesus? A resposta não é tão linear como poderiam sugerir as primeiras linhas dos diferentes evangelistas, que o chamam de Filho de Deus, Messias (Cristo), filho de David, Emanuel.

A questão é que Jesus é o que sobre Ele vamos aprendendo: um Mestre que surge no meio do povo, um curandeiro eficaz, um afrontador das ideias estabelecidas. Ele até acalma as tempestades e os discípulos perguntam-se:  –Quem será este, a quem até os ventos e o mar obedecem? Não se trata apenas de fazer, vencer, conquistar: trata-se de introduzir um elemento de mistério, de desconhecido, de pergunta identitária.

E qual será a ação definitiva, o ponto a partir do qual não há retorno? Será uma peripécia? Ou será um reconhecimento? Ou será, com Aristóteles, uma coincidência dos dois, um reconhecimento decisivo, a marca das melhores estórias, as que deixam mais impacto? O momento acontece durante o julgamento de Jesus, na sala do Sinédrio, perante o Sumo Sacerdote, as testemunhas que o acusam e o grupo dos anciãos.

As acusações não coincidem, parece que o réu será libertado e voltará a ser o que sempre foi, um Mestre incómodo mas livre, cercado pelas multidões, pelos discípulos, pelo grupo que desceu com Ele da Galileia. Se assim for, a estória não introduz nada de novo, Ele repetirá o que sempre fez. Mas não é assim que as coisas terminam, uma peripécia espreita e vai já manifestar-se.

O Sumo Sacerdote pergunta (Evangelho de S. Marcos):

És Tu o Messias, o Filho do Deus Bendito? E Jesus responde:

Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vir sobre as nuvens do céu.

Neste momento, o juiz rasga as suas vestes, manifestando o escândalo das palavras que acabou de ouvir… não há mais discussão, todos concordam que Ele merece a morte. É neste momento que se sela o seu destino, a estória está traçada. A resposta de Jesus constitui então uma peripécia (precipita os eventos finais), mas é sobretudo um reconhecimento, o dos presentes, de que Ele é um blasfemo que deve ser executado.

No caso de Jesus, há uma outra dimensão que desafia o ouvinte, abre-se uma camada mais profunda: o que pensam sobre Ele é apenas a porta de saída de quem verdadeiramente Ele é, porque depois da morte a Ressurreição faz reler toda a estória, dá-nos novos olhos sobre Ele. É uma identidade tão radical que exige a total suspensão da descrença.

 

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