Pelo padre José Júlio Rocha

O que é viver? O que está para além da morte? Qual o destino do homem? O que é a arte, a cultura, o amor? O que é a minha consciência, o meu ser, o meu existir? A realidade existe ou é só uma construção subjetiva? O que fazemos no meio de um Universo com 93 mil milhões de anos-luz de comprimento, tão sós? O que é o conhecimento, a verdade, o ser? Existe Alguém ou estamos absolutamente sós? A estas, e a uma infinidade de outras perguntas como estas, o homem, ao longo da história, tem tentado responder com a religião, a filosofia, a ciência. São as perguntas últimas, aquelas que não têm nem podem ter uma resposta definitiva, matemática.
Todos nós temos momentos de vazio na vida. Horas ou dias em que parece que nada faz sentido, em que nos perguntamos o porquê de tudo isto, em que pomos tudo em causa: chamamos a essa atitude “crise existencial” e este é o ponto de partida de toda a busca de sentido. O vazio é extremamente rico, a ponto de nos despertar a vontade de procurar mais sentido, mais razão, mais vida. A crise existencial é um dos princípios da sabedoria.
Talvez compreendendo Nietzsche possamos ter umas luzes sobre o sentido que a humanidade tende a dar à vida hoje, em pleno século XXI. Aprecio Nietzsche, para além do bem e do mal, como um porta-voz da época da crise da razão e da fé e um profeta do século XX, para já não falar das tendências niilistas que o século XXI nos oferece. A filosofia de Nietzsche parte das suas crises existenciais frequentes e do sentido que ele lhes queria dar. Existe alguma forma de dar sentido à vida? Para Nietzsche, não existe. A vida vale por si mesma. Não existe fonte de sentido nem de moralidade para a vida. A vida vai para além do bem e do mal. O valor supremo é viver.
Para Nietzsche, na base dessa vida está a vontade de poder. Todos os seres vivos têm, na sua génese, esta vontade de poder, que se traduz na lei do mais forte, no egocentrismo essencial a cada ser vivo, na constante vontade de superação, de vencer, de ser alguém, de ser mais importante do que os outros, de ter mais, de valer mais. Esta é a essência da vida.
A filosofia grega e o cristianismo, que exaltam a perfeição, a razão, a lei, a moralidade, a beleza objetiva e cósmica de Apolo, devem ser substituídas pela força da natureza, pelos instintos mais primários, pela libertação das forças vitais aprisionadas pelos grilhões da lei e da ordem, pela vitalidade caótica de Dionísio, ou Baco, se quisermos. Por exemplo, quando o cristianismo exalta a humildade, contraria a vida, porque a humildade é um aniquilamento do ser.
Como é que o homem se “liberta” dessas amarras e vive plenamente, como “super-homem” das massas? No Aforismo 125 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche apresenta um louco que, de lanterna na mão, salta para o meio de uma pequena multidão que pergunta “onde está Deus?” e grita: “Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu: Quem o matou fomos todos nós, vocês e eu”. E continua: “A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele?”
A morte de Deus é o momento central do pensamento de Nietzsche. E não é só a simples questão de nos tornarmos ateus. A morte de Deus em Nietzsche é sobretudo uma metáfora da fundamental renúncia a tudo aquilo em que nós acreditávamos como base, pano de fundo e sentido de toda a vida. É este o passo vital, tão perturbador como olhar de frente o sol sem pestanejar, para a libertação do homem. É preciso engolir o oceano, limpar com uma esponja todo o horizonte. É o gesto libertador, o mais importante da vida: nada acima, nada abaixo, nada aos lados. Viver, só viver.
Neste contexto, a razão, a verdade, a própria ciência são limites impostos à vida, que não pode ter limites. O niilismo (tendência filosófica que tem o “nada” como princípio) é esta vida acima do bem e do mal, vida de deuses. E é a conclusão da filosofia de Nietzsche e o princípio do fim da sua vida, cujos últimos dez anos foram passados num manicómio, sem dar acordo de si.
Os séculos XX e XXI foram recheados desse niilismo, que transbordou da filosofia para a moral, da moral para a lei, da lei para a política, da política para a vida quotidiana. Quase tudo aquilo que a II Guerra Mundial nos ofereceu foi um triunfo do niilismo traduzido em vontade de poder, profetizado por Nietzsche em quase todos os seus livros. O nazismo exaltava a vida como poder; condenava as filosofias e as artes decadentes; considerava que havia raças que não deviam existir; um homem novo, “ariano”, surgia como super-homem das massas, destinado a ser dono do mundo.
O niilismo transluz em todo o século XXI, quando, por exemplo, nos deparamos dolorosamente com a execução prática de um dos mais intrépidos aforismos de Nietzsche: “Não existem factos, existem interpretações”. O mais importante é a exaltação do poder e da força, da pertença e da identidade, a verdade esvai-se, da mesma maneira que se esvai na retórica oposta do “wokismo”, que exalta a fragilidade e um impressionante egocentrismo vazio, que não é outra coisa senão a vontade de poder com outras traduções.
Concordo metade com Nietzsche: o valor inigualável da vida para se viver. No que não concordo é na solução para a vida. A essência da vida não é a vontade de poder, é o amor. Na altura em que Nietzsche profetizava, os homens já não compreendiam o amor como Jesus o ensinou. Tinham uma fé sem amor, uma fé sem fé, uma fé sem liberdade. Ainda hoje tende a ser assim.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no jornal Diário Insular, na coluna Dorsal Atlântica