Papa reforça proposta de “Igreja pelos pobres e com os pobres”, publicando documento preparado pelo seu antecessor

Leão XIV publicou hoje a primeira exortação apostólica do pontificado, ‘Dilexi Te’, na qual assume o legado pastoral e social de Francisco, numa reflexão sobre a relação da Igreja com os pobres.
“Em continuidade com a Encíclica Dilexit nos, o Papa Francisco, nos últimos meses da sua vida, estava a preparar uma exortação apostólica sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres, intitulada Dilexi te, imaginando Cristo a dirigir-se a cada um deles dizendo: Tens pouca força, pouco poder, mas «Eu amei-tei»”, explica o Papa, eleito a 8 de maio deste ano.
O título ‘Dilexi Te’ (Eu amei-te, em português) é retirado de uma passagem do último livro da Bíblia, o Apocalipse (Ap 3, 9).
“Ao receber como herança este projeto, sinto-me feliz ao assumi-lo como meu – acrescentando algumas reflexões – e ao apresentá-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado predecessor de que todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornarmo-nos próximos dos pobres”, escreve Leão XIV.
A reflexão sublinha a “opção preferencial pelos pobres”, uma expressão que se generalizou na Igreja Católica a partir da América Latina – onde Francisco nasceu e onde o atual Papa foi missionário e bispo – como uma dimensão teológica, e não apenas social, na vida da Igreja.
“A condição dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e económicos e, sobretudo, a Igreja. No rosto ferido dos pobres encontramos impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo”, sustenta a encíclica.
Na linha do seu antecessor, Leão XIV defende o ideal de uma Igreja humilde, fiel à sua vocação de serviço aos necessitados, inspirando-se em figuras como São Francisco de Assis e os membros das ordens mendicantes, surgidas no século XIII.
“A Igreja é luz quando se despoja de tudo, a santidade passa por um coração humilde e dedicado aos pequenos”, refere, falando numa “revolução evangélica, na qual o estilo de vida simples e pobre se converte em sinal profético para a missão”.
“Jesus é um mestre itinerante, cuja pobreza e precaridade são sinais do vínculo com o Pai e são pedidas também a quem deseja segui-lo no caminho do discipulado, precisamente para que a renúncia aos bens, às riquezas e às seguranças deste mundo seja um sinal visível do ter-se confiado a Deus e à sua providência”, pode ler-se
O Papa enfatiza que a Igreja deve assumir “uma decidida e radical posição em favor dos mais fracos”, num texto em que retoma a tradição bíblica e patrística (teólogos da antiguidade cristã), convidando a reconhecer os pobres como “carne de Cristo” e “modo fundamental de encontro com o Senhor da história”.
“A caridade não é uma via opcional, mas o critério do verdadeiro culto”
A exortação apostólica Dilexi te assume críticas dentro e fora da Igreja a esta mensagem em defesa dos mais frágeis.
“Observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho, para não se correr o risco de o substituir pela mentalidade mundana”, adverte o pontífice.
Leão XIV sustenta que os pobres não são apenas destinatários de assistência, destacando a “necessidade de considerar as comunidades marginalizadas como sujeitos capazes de criar cultura própria”.
“Existem muitas formas de pobreza: a daqueles que não têm meios de subsistência material, a pobreza de quem é marginalizado socialmente e não possui instrumentos para dar voz à sua dignidade e capacidades, a pobreza moral e espiritual, a pobreza cultural, aquela de quem se encontra em condições de fraqueza ou fragilidade seja pessoal seja social, a pobreza de quem não tem direitos, nem lugar, nem liberdade”.
O primeiro Papa da Ordem de Santo Agostinho, da qual foi responsável mundial, escreve que “numa Igreja que reconhece nos pobres o rosto de Cristo e nos bens o instrumento da caridade, o pensamento agostiniano permanece uma luz segura”.
“Hoje, a fidelidade aos ensinamentos de Agostinho exige não só o estudo de suas obras, mas a predisposição para viver com radicalidade o seu apelo à conversão que inclui necessariamente o serviço da caridade”, indica.
A `Dilexi te ’ está dividida em 121 pontos, com quase 60 citações de Francisco, entre as 129 notas do texto.
“Devemos sentir a urgência de convidar todos a entrar neste rio de luz e vida que provém do reconhecimento de Cristo no rosto dos necessitados e dos sofredores. O amor pelos pobres é um elemento essencial da história de Deus connosco e irrompe do próprio coração da Igreja como um apelo contínuo ao coração dos cristãos, tanto das suas comunidades, como de cada um individualmente”, apela Leão XIV.
Exortação evoca vítimas da fome e das “crescentes desigualdades”, também na Europa
“Não devemos baixar a guarda diante da pobreza. Preocupam-nos, de modo particular, as graves condições em que vivem muitíssimas pessoas, devido à escassez de alimentos e água potável. Todos os dias morrem milhares de pessoas por causas relacionadas com a desnutrição”, escreve o Papa, no documento que começou a ser preparado pelo seu antecessor.
O documento pontifício destaca que, mesmo na Europa, “há cada vez mais famílias que não conseguem chegar ao fim do mês” com dinheiro.
“Em geral, nota-se que as diferentes manifestações da pobreza aumentaram. Ela já não se apresenta como uma condição única e homogénea, mas manifesta-se em múltiplas formas de empobrecimento económico e social, refletindo o fenómeno de crescentes desigualdades, mesmo em contextos geralmente prósperos”, pode ler-se.
“Embora nalguns países se observem mudanças importantes, ‘a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra’, especialmente se pensarmos nas mulheres mais pobres”, lê-se.
Leão XIV afirma que o coração da Igreja é “solidário com os pobres, excluídos e marginalizados”, com todos aqueles que são considerados “descartáveis” pela sociedade.
“A cultura dominante do início deste milénio impele-nos a abandonar os pobres ao seu próprio destino, a não os considerar dignos de atenção e muito menos de apreço”, lamenta.
O Papa questiona que, dentro das comunidades católicas, entende que o único dever é “rezar e ensinar a verdadeira doutrina”, desvinculando este aspeto religioso da promoção integral.
“Acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria e ensinar-lhes antes a trabalhar. Além disso, assumem-se, às vezes, critérios pseudocientíficos para dizer que a liberdade do mercado levará naturalmente à solução do problema da pobreza”, adverte.
Citando a instrução da Doutrina da Fé sobre alguns aspetos da “Teologia da libertação” (6 de agosto de 1984), o pontífice escreve que “a preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral”.
“Por vezes, nalguns movimentos ou grupos cristãos, nota-se a falta ou mesmo a ausência de compromisso pelo bem comum da sociedade e, em particular, pela defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos. A este respeito, é preciso recordar que a religião, especialmente a cristã, não pode ser confinada à esfera privada”, insiste.
Leão XIV, que foi missionário e bispo no Peru, questiona o que chama de “uma pastoral das ditas elites”, segundo a qual, “em vez de perder tempo com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais, para que, através deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes”.
“É fácil perceber a mundanidade que se esconde por trás destas opiniões: elas levam-nos a olhar para a realidade com critérios superficiais e desprovidos de qualquer luz sobrenatural, privilegiando relações que nos tranquilizam e buscando privilégios que nos favorecem”, indica.
O documento valoriza as iniciativas que a Igreja Católica promoveu ao longo da história, junto aos migrantes, doentes e presos, como sinal de fidelidade ao Evangelho e de maturidade social.
Entre as figuras citadas está o português São João de Deus (1495-1550), que fundou a Ordem Hospitaleira em Granada (Espanha), em 1539; foi beatificado em 1630 e canonizado em 1690.
“São João de Deus, ao fundar a Ordem Hospitaleira que leva o seu nome, criou hospitais modelo que acolhiam todos, independentemente da sua condição social ou económica. A sua famosa expressão – ‘Fazei o bem, irmãos!’ – tornou-se lema da caridade ativa com os doentes”, sublinha o Papa.
O texto dedica uma secção ao cuidado com os pobres na vida monástica, sustentando que “para estar perto de Deus é preciso estar próximo dos pobres”, a exemplo do que aconteceu nos mosteiros beneditinos que foram, durante séculos, “lugares de refúgio para viúvas, crianças abandonadas, peregrinos e mendigos”.
“A hospitalidade monástica beneditina permanece até hoje sinal de uma Igreja que abre portas, que acolhe sem interrogar, que cura sem cobrar”, assinala Leão XIV.
O Papa saúda o trabalho de religiosos e religiosas que atuam em periferias urbanas, zonas de conflito e corredores de migração.
“A tradição destas Ordens não cessou. Pelo contrário, inspirou novas formas de ação diante das escravidões modernas: o tráfico de pessoas, o trabalho forçado, a exploração sexual, as diversas formas de dependência”, precisa.
“Dirijo um sincero agradecimento a todos aqueles que escolheram viver entre os pobres: àqueles que não só vão visitá-los de vez em quando, mas que vivem com eles e como eles. Esta é uma opção que deve encontrar lugar entre as formas mais elevadas da vida evangélica”, lê-se ainda.

Papa reforça críticas à “economia que mata” e rejeita fé nas “forças invisíveis do mercado”
“É necessário, portanto, continuar a denunciar a ‘ditadura de uma economia que mata’ e reconhecer que ‘enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz’”, escreve o Papa.
A exortação apostólica denuncia “estruturas” políticas e económicas que perpetuam a miséria, apelando à transformação social para ultrapassar modelos distributivos que legitimam desigualdades extremas e o descarte de pessoas, “tolerando com indiferença que milhões de pessoas morram à fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano”
“Embora não faltem diversas teorias que tentam justificar o estado atual das coisas ou explicar que a racionalidade económica nos exige esperar que as forças invisíveis do mercado resolvam tudo, a dignidade de cada pessoa humana deve ser respeitada já agora, não só amanhã, e a situação de miséria de tantas pessoas, a quem é negada esta dignidade, deve ser um apelo constante à nossa consciência”, apela Leão XIV.
“Torna-se normal ignorar os pobres e viver como se eles não existissem. Apresenta-se como uma escolha razoável organizar a economia exigindo sacrifícios ao povo, para atingir certos objetivos que interessam aos poderosos. Entretanto, para os pobres restam apenas promessas de ‘gotas’ que cairão, até que uma nova crise global os conduza de volta à situação na qual estavam anteriormente”, lê-se na encíclica que foi iniciada pelo Papa Francisco.
O Papa lamenta, em particular, que as populações mais desprotegidas sejam culpabilizadas pela sua situação.
“Os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino. Muito menos a pobreza é uma escolha, para a maioria deles. No entanto, ainda há quem ouse afirmá-lo, demonstrando cegueira e crueldade”, critica.
Leão XIV lembra quem trabalha diariamente para “sobreviver” sem “nunca melhorar verdadeiramente” a sua vida.
“Não podemos dizer que a maioria dos pobres estão nessa situação porque não obtiveram ‘méritos’, de acordo com a falsa visão da meritocracia, segundo a qual parece que só têm mérito aqueles que tiveram sucesso na vida”, escreve.
O Papa convida a rejeitar uma visão da vida “centrada na acumulação de riquezas e no sucesso social a todo o custo, a ser alcançado mesmo explorando os outros e aproveitando ideais sociais e sistemas político-económicos injustos, favoráveis aos mais fortes”.
“Num mundo onde os pobres são cada vez mais numerosos, vemos paradoxalmente crescer algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns. Isto significa que persiste – por vezes bem disfarçada – uma cultura que descarta os outros sem sequer se aperceber”, adverte.
“Os mais fracos não têm a nossa mesma dignidade? Aqueles que nasceram com menos possibilidades valem menos como seres humanos e devem limitar-se apenas a sobreviver? A resposta que damos a estas perguntas determina o valor das nossas sociedades e dela também depende o nosso futuro: ou reconquistamos a nossa dignidade moral e espiritual ou caímos numa espécie de poço de imundície”, interpela.
O documento pontifício adverte para a necessidade de continuar o “compromisso em favor dos pobres e pela erradicação das causas sociais e estruturais da pobreza”.
“As sociedades em que vivemos privilegiam, com frequência, linhas políticas e padrões de vida marcados por numerosas desigualdades e, por isso, às antigas formas de pobreza que evidenciámos e se procuram combater, acrescentam-se outras novas, por vezes mais subtis e perigosas”, indica o Papa.
Citando Francisco, Leão XIV alerta para “os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual de desenvolvimento e da cultura do descarte” sobre a vida de milhões de pessoas, em especial os “mais frágeis”.

O acolhimento de migrantes e refugiados: “Onde se erguem muros, a Igreja constrói pontes”
“A Igreja, como mãe, caminha com os que caminham. Onde o mundo vê ameaça, ela vê filhos; onde se erguem muros, ela constrói pontes. Pois sabe que o Evangelho só é credível quando se traduz em gestos de proximidade e de acolhimento; e que em cada migrante rejeitado, é o próprio Cristo que bate às portas da comunidade”, escreve o Papa.
O documento reafirma a presença histórica e pastoral da Igreja junto dos migrantes, evocando figuras e iniciativas que marcam o acompanhamento das pessoas migrantes, como São João Batista Scalabrini e Santa Francisca Xavier Cabrini, promovendo assistência espiritual, jurídica e social.
“O magistério contemporâneo reafirma com clareza este compromisso. O Papa Francisco recordava que a missão da Igreja junto aos migrantes e refugiados era ainda mais ampla, insistindo que ‘a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode-se resumir em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar’”, indica Leão XVI.
A presença atual da Igreja junto dos migrantes, sublinha o texto, concretiza-se em centros de acolhimento para refugiados, missões nas fronteiras e ações de organizações como a ‘Caritas Internationalis’.
O Papa aponta que a Igreja vê nos migrantes “irmãos e irmãs” a acolher e respeitar.
“A experiência da migração acompanha a história do povo de Deus. Abraão parte sem saber para onde vai; Moisés conduz um povo peregrino pelo deserto; Maria e José fogem com o Menino para o Egito. O próprio Cristo viveu entre nós como estrangeiro”, escreve.
“O amor cristão é profético, realiza milagres, não tem limites: é para o impossível. O amor é sobretudo uma forma de conceber a vida, um modo de a viver. Assim, uma Igreja que não coloca limites ao amor, que não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar, é a Igreja de que o mundo hoje precisa.”
A exortação recorda figuras como Santa Teresa de Calcutá, “ícone universal da caridade vivida até o extremo em favor dos mais indigentes, descartados pela sociedade”, e Santa Dulce dos Pobres, que dedicou a vida à assistência dos marginalizados no Brasil.
“A santidade cristã floresce, com frequência, nos lugares mais esquecidos e feridos da humanidade. Os mais pobres entre os pobres – que não apenas carecem de bens, mas também de voz e do reconhecimento da sua dignidade – ocupam um lugar especial no coração de Deus”, pode ler-se.
Leão XIV destaca mesmo o papel dos “movimentos populares” no combate à pobreza.
“Ao longo dos séculos da história cristã, devemos igualmente reconhecer que a ajuda aos pobres e a luta pelos seus direitos não envolveu apenas indivíduos, algumas famílias, instituições ou comunidades religiosas. Houve, e há, vários movimentos populares, constituídos por leigos e conduzidos por líderes populares, colocados muitas vezes sob suspeita e até perseguidos”, reconhece.
Uma exortação apostólica é um documento formal do Papa dirigido principalmente aos católicos, sem se limitar a eles, cujo objetivo principal é orientar os destinatários sobre um tema específico – neste caso, “o amor para com os pobres” –, estimulando a reflexão e a ação.
(Com Ecclesia e Vatican News)