Direção obstinadamente contrária

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores / JC

A Via Cola di Rienzo estende-se por quase mil e quinhentos metros, desde a Piazza del Risorgimento, atravessando as águas turvas do Tibre, até à imponente Piazza del Popolo. É uma rua larga, arejada, a fazer lembrar as avenidas novas de Lisboa, também do século XIX. Estamos, caso o leitor não saiba, em Roma, arredores do Vaticano.

Era já lusco-fusco quando eu subia essa Via Cola di Rienzo, com livros às costas, vindo de uma livraria bem posicionada. Estava em Roma por ocasião do Jubileu das Equipas Sinodais e Organismos de Participação, fins do mês passado. Roma fervilhava. Tivéramos um encontro com Leão XIV sobre as grandes questões que a sinodalidade, que é outra maneira de dizer “comunhão eclesial”, ou, seja, a melhor forma de pôr o Vaticano II a dar frutos. Há muita gente a trabalhar nisto e também há muita gente para quem isto é uma moda passageira, mais uma espécie de delírio do Papa Francisco que há de passar quando a sua memória se esvair da sempre eterna Roma e seus arredores pelo mundo inteiro.

Mas Roma e os seus peregrinos não conseguem esquecer Francisco. Por todos os lados, nas lojas de recordações que inundam as margens do Vaticano e o resto de Roma, nas livrarias, nas mais variadas lojas, Francisco domina. Desde os magnetes para os frigoríficos aos calendários para 2026, desde os postais coloridos aos terços e às medalhas, desde as camisas e t-shirts até aos imensos livros – cada vez mais – que se vão publicando de e sobre o Papa argentino. As pessoas ainda amam Francisco e vão continuar a amá-lo por longos anos, mesmo que a memória seja, hoje, tão precária.

Com os livros às costas, chamou-me a atenção uma loja – acho que recente – ali à esquerda, quem sobe a Cola di Rienzo. Era um negócio de artigos religiosos, vestes talares e alfaias litúrgicas, dessas que cada vez vendem mais em Roma. No meu tempo romano, há mais de vinte anos, eram bem discretas essas lojas, vendendo apenas o necessário, o simples, o discreto. Hoje, esses negócios prosperam, ricos e opulentos, pesadas vestes, capas de asperges, casulas, estolões imperiais, batinas e chapéus de aba larga, tricórnios, mitras e palas, cálices, patenas e velas, turíbulos, navetas e amitos, tudo ou quase tudo com um fator comum, o ouro, bordado, estampado, em folha ou maciço, tudo reluz despudoradamente dentro daquele negócio. Fico-me a olhar para um barrete tricórnio cuja módica quantia não passa dos 175 euros.

E ali estou eu, a começar a desviar o rosto do preço do barrete, quando sou invadido por um grupo de padres novos, uns dez, todos dentro das suas batinas, bem apresentados e limpos, que falam italiano mas de países diferentes. Debruçam-se, como eu, sobre a luminosa montra. Estavam a regressar de uma missa, celebrada nesse dia 25 de outubro, na basílica de São Pedro, presidida pelo cardeal Raymond Burke, em rito tridentino (de costas para o povo, na gíria católica popular), onde tinham participado milhares de fiéis e clérigos. Terá sido uma missa bonita, porque o cardeal Burke sabe vestir-se bem e um ritual tridentino preza-se em beleza e dignidade.

Decidi afastar-me e continuar a subir a rua, em direção às muralhas do Vaticano. Chamou-me a atenção uma figura inusitada. Um mendigo, mas não um mendigo qualquer, como se veem muitos em Roma. Este era um velhote na casa dos setenta e muitos. Casaco verde-garrafa, cabelos brancos bem penteados, óculos de massa, limpo, ali, sentado no chão, cabeça baixa de vergonha, uma caixinha de papelão à frente, uma dúzia de euros lá dentro. Num impulso, sentei-me ao seu lado e fiquei a saber que era mais uma das vítimas desta economia que mata. Sentava-se ali todos os dias e esperava que aquelas horas a ver pingar moedas na caixa o pudessem aliviar de uma reforma que nem dava para pagar o quarto onde ainda vivia, viúvo e sem filhos que o pudessem ajudar.

Pelo rabo do olho vi que os sacerdotes novos, aqueles que tinham partilhado a montra comigo, vinham na nossa direção. Confabulavam alegremente, traziam sacos com o nome da loja. Passaram por nós, fazendo uma curva larga, não olharam, não viram, não deram por isso, a única razão pela qual percebi que eles sabiam que ali estava alguém foi a curva larga que deram no passeio para se desviarem de nós. O velhote digno e mendigo manteve, à passagem, os olhos no chão. Levantou o rosto para mim e, com um sorriso cansado, desabafou: “Os padres nunca deixam nada.” Não era uma crítica, nem sequer, talvez, um desabafo. Foi uma sorridente constatação.

E eu, dando graças a Deus por não lhe ter dito que era padre, fiz o que já tinha decidido, há vinte minutos, quando me sentei ao seu lado: deixei na caixa uma nota de vinte euros, levantei-me, carreguei o saco de livros aos ombros, cumprimentei o senhor, resignadamente agradecido, e comecei a andar, desta vez a descer a Via Cola di Rienzo, no sentido contrário às imponentes muralhas do Vaticano.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na coluna Dorsal Atlântica.

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