O enigma de “O louco de Deus no fim do Mundo”

Por Carmo Rodeia

Foto: Igreja Açores/GM30

 

Talvez o livro mais conhecido de Javier Cercas, espanhol de Cáceres, terra de que tenho gratas memórias de começos auspiciosos, seja o romance “Soldados de Salamina”, mas o recém chegado a Portugal “O Loco de Deus no fim do Mundo,  escrito depois do papa Francisco o ter convidado a acompanhá-lo na visita à Mongólia e de lhe ter escancarado o Vaticano , a ele “ateu, anticlerical, laicista militante, racionalista obstinado e um ímpio inveterado”, como se confessa logo em jeito de provocação nas primeiras páginas, fez-me regressar a este autor traduzido em mais de 30 línguas.

Gostei particularmente da afirmação que fez numa  entrevista, creio que do JN, sobre o livro, que em jeito de novela policial, trata de resolver um enigma que colocaria ao Papa (a quem mais haveria de ser?!) : “A minha mãe quando morrer vai ver o meu pai como sempre desejou?”.

Esta é aquela pergunta que todos fazemos e que está no cerne da nossa fé: a esperança na vida eterna.

A reação do Papa é fulminante e peremptória: ele não hesita nem por um segundo, nem por um décimo de segundo, nem por um milésimo de milésimo de segundo e afirma que é claro que há de haver um reencontro e que Deus a todos acolhe”

A narrativa é dividida em três momentos: antes do voo, quando Cercas entrevista cardeais, jornalistas e funcionários do Vaticano e traça um panorama da vida de Jorge Mario Bergoglio, o Papa que veio do fim do mundo e que para ele é um dos mais controversos da história da Igreja; durante a viagem, quando o autor se integra na comitiva papal na Mongólia, onde encontra missionários que exercem a sua fé nas periferias do mundo e é apresentado a um país com valores, crenças e realidades diferentes daqueles do berço da igreja Católica; e depois, quando Cercas apresenta reflexões sobre os limites da Igreja e o legado do papa Francisco.

No livro, diz várias vezes que a fé é uma espécie de super poder. Dá uma serenidade e uma força enorme porque radica numa confiança absoluta e não num ato voluntário ocasional, recordando um pouco Flannery O´Connor que dizia que ter fé é muito mais difícil do que não ter…

O louco de Deus de que o livro fala é o Deus de Nietzsche, aquele que compreendeu que Deus não existe e agora pergunta o que devemos fazer depois de termos perdido o que dava sentido ao mundo. Que dava sentido a tudo. Mais uma vez, uma pergunta para um milhão de dólares. Não sei se muitos a colocam ou se sentem sequer necessidade de a colocar. Antes e para além de nós o que é que existe?

Hoje temos várias coisas em que acreditamos, mas perdemos a ideia do tudo, ou melhor, do todo. Fazemos coisas para o grupo, acreditamos na família, nos amigos, nos conhecidos, nos políticos, em teorias. Enfim, acreditamos em várias coisas mas não na fundamental. Talvez porque nos vemos aflitos para aderir à extensão e profundidade da crença em Deus, com todos os medos e preconceitos.

Miguel Esteves Cardoso, na sua crónica este domingo no Publico, afirmava que talvez o nosso deus seja hoje o Planeta, uma espécie de lugar cerebral que sentimos e vivemos como se fosse a nossa alma. Ninguém lhe é indiferente até porque poderia parecer mal, numa sociedade politicamente correta que endeusa animais mas esquece as pessoas. Que apologeticamente (e bem!) defende a natureza mas calca bem nos mais pobres, que vivem em países explorados até ao tutano, como se não houvesse amanhã porque a ganância é dessa natureza: quanto mais melhor. E quanto mais rápido, melhor ainda. Mesmo que os nossos semelhantes mereçam a nossa maior e mais firme indiferença.

Quando Deus era tudo não era muito diferente. Pobres e ricos sempre existiram, uns e outros mantendo a devida distãncia que o estatuto e o poder separavam.

Quando Deus era o sentido de todas as coisas também existiam ricos e pobres. Afinal mudou pouco…

Regresso ao “O louco de Deus no fim do Mundo, que nos conta a história de um louco sem Deus atrás de um louco com Deus. Quem ganha? Bem,  Cercas conclui que as propostas do papa Francisco para a Igreja “vão levar tempo” a serem levadas a sério. E que o mundo não está preparado para reabilitar Deus, trazendo-o para o centro da vida. O que fazemos? Bom, quem sabe, senão começaríamos por nos reabilitar a nós próprios, como pessoas. Que valores defendemos, que interesses priorizamos e que respostas damos a quem de nós precisa…Já seria um começo para a reabilitação da civilização e Deus haveria de voltar a ser o tudo da humanidade

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