Era já tarde e Jesus começou a falar

Pelo Padre José Júlio Rocha

 

Era já tarde quando Jesus chegou àquela cidade sem nome, acompanhado pelos discípulos e por uma pequena multidão que, desconfiada como sempre, estava à espera ninguém sabe de quê. Normalmente, quando se juntam multidões em expetativa, mesmo que pequenas, espera-se sempre algo, mas raramente se sabe o que se espera. Aquela pequena multidão esperava, portanto, sem saber bem o quê, algo de Jesus. Todos sabiam que Jesus havia de, naquela cidade, naquele entardecer, anunciar uma mensagem essencial. Ninguém sabia bem o que era.

Então Jesus começou a falar. O Reino dos Céus, essa realidade estranha e utópica, já dele O tinham ouvido falar. Era de um Reino, ninguém sabia onde, ninguém sabia como era esse Reino. Jesus falava constantemente desse Reino dos Céus e ninguém sabia se lhe pertencia, como pertencer, quais as condições, onde ficava sequer. Julgava-se que Jesus pudesse ser uma espécie de caudilho, um líder de espada em punho. Julgava-se que, para pertencer a esse estranho Reino, seria necessário ser ortodoxo, cumpridor, legal, saudável ou até, se preciso fosse, santo.

E Jesus começou a falar. E disse que, num certo dia, quando Ele viesse na Sua Glória, havia de chamar para si as ovelhas para recebere28m, em herança, esse Reino. Porque razão? Quase todos julgavam que os eleitos seriam os perfeitos, os cumpridores, os que não duvidavam da omnipotência divina, os que não pecavam, cumpriam os mandamentos e eram puros.

E Jesus começou a falar: «Tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; estava nu e vestiste-me; era estrangeiro e acolhestes-me; estava na prisão e fostes ver-me; estava doente e fostes visitar-me». (tudo isto no capítulo 25 de São Mateus e confirmem, para que eu não caia na mentira).

Talvez tenha sido esse o momento essencial em que o mundo começou a não compreender Jesus e a Sua Mensagem. A salvação, ou a entrada no Reino dos Céus eram, tão simplesmente, uma questão de amor ao irmão, sobretudo ao pobre. Em todos os Evangelhos o pobre está no centro, no coração da mensagem de Jesus. Não é possível encontrar, nos Evangelhos, a primazia que hoje se dá aos ditames do Direito Canónico; nem menos é possível encontrar, nos Evangelhos, os eflúvios litúrgicos com que hoje a Igreja quase esgota a essência da sua missão. No entanto, não conseguimos fugir à dura constatação de que o Pobre encontra, nos Evangelhos, a sua casa, a sua essência, a salvação que a ele lhe é dirigida.

Jesus anuncia a pobreza “em Espírito”, aquela escolhida livremente, aquela de quem prefere os bens da alma à abundância dos bens terrenos. Numa palavra, Jesus ama o pobre, mas não quer a pobreza. Nós, hoje, amamos que os pobres fiquem pobres, amamos a pobreza limpa, envergonhada, inocente, enfim, uma pobreza romântica, respeitadora, calada e obediente, porque sempre gostámos dos pobres, sempre quisemos ajudá-los, libertá-los, sempre tivemos sentimentos honestos para com eles, sempre quisemos fazer tudo pelos pobres, desde que nunca saíssemos das costas deles. Nunca quisemos que os pobres deixassem de ser pobres, porque isso nos custa deixar de ser os ricos.

Mas os pobres que Jesus amava já eram odiados no Seu tempo. Eram essencialmente publicanos, pecadores, prostitutas, estrangeiros, leprosos e samaritanos. Nenhum deles era um pobre “honesto e envergonhado”, daqueles de quem nós temos pena. Os publicanos pertenciam à classe dos corruptos; os pecadores eram o que hoje são os drogados e os dependentes dos subsídios; os samaritanos faziam parte da classe dos inimigos religiosos, os palestinianos para Israel, por exemplo; os leprosos faziam parte daquela lavra de humanos “esquecidos” por Deus, pelos seus imensos pecados, como os miseráveis sem-abrigo que se escondem nas nossas estúpidas cidades; e, finalmente, os estrangeiros pertenciam à imensa multidão dos migrantes, os refugiados, os “fantasmas” que habitam, ilegais, os fundos e os sótãos podres das nossas magníficas cidades.

Na mensagem de Jesus percebemos que o outro é simplesmente o Outro, imagem de Deus, rosto de Jesus. O outro é, antes de tudo, uma pessoa que deve ser respeitada na sua condição de pessoa. Isto traz consequências sérias para quem é cristão. Já é bem pouco digno julgar as pessoas em função do seu trabalho ou estatuto, como, por exemplo, haver quem não goste de padres, advogados ou políticos, como se a profissão fosse mais importante do que a pessoa. Julgar as pessoas pela cor da pele, a origem geográfica, a etnia ou a condição social é perfeitamente inaceitável. É o execrável estatuto de quem olha o outro de cima para baixo, como se a realidade já não bastasse o suficiente para levar ao mais puro sofrimento hordas de seres humanos.

Em poucos anos, três ou quatro, Portugal passou de um dos países mais acolhedores da Europa para um dos mais xenófobos, numa vaga de propaganda e distribuição de medo que tem levado a contendas e enfrentamentos por todo o lado, desde as mesas das tascas velhas até ao hemiciclo de São Bento. Ninguém se escandalizou quando Manuel Pinho foi demitido do cargo de ministro por fazer uns cornos na Assembleia da República. Ninguém se escandalizou também quando um deputado, há poucos dias, mandou uma colega negra para a sua terra. Em bem pouco tempo Portugal mudou. Para bem pior.

A indiferença perante esta mudança é uma vergonha.

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na coluna Dorsal Atlântica

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