Por António Maria Gonçalves

A Ilha das Flores — juntamente com a vizinha Ilha do Corvo — tem sido frequentemente descrita como a periferia da periferia: o extremo do país, o extremo da Europa, um ponto perdido no mapa. Mas será mesmo assim? Ou terá sido essa imagem, tantas vezes repetida, um equívoco que obscurece a verdadeira condição deste território singular?
A geografia recorda-nos que as Flores e o Corvo assentam na Placa Norte-Americana, embora administrativamente constituam o ponto mais ocidental da Europa. Somos, portanto, um paradoxo vivo: europeus sobre chão americano, guardiões insulares de um Atlântico que nos atravessa desde sempre o destino. O Ilhéu de Monchique ( a algumas braçadas da Fajã Grande das Flores) marca o nosso extremo, é certo, mas o que esse extremo guarda não é afastamento — é centralidade.
Estamos, afinal, a meio caminho entre Lisboa e St. John’s, no Canadá. Se a ilha estivesse meros quarenta quilómetros mais a oeste, seria o ponto equidistante entre as duas massas continentais. Estamos mais próximos da rota das viagens do mundo do que do centro administrativo que nos nomeia. O que muitos chamam “fim” é, na verdade, uma ponte.
O Canal da América
Desde a infância, muitos de nós aprendemos a observar o desfile incessante de embarcações ao largo da costa ocidental. Grandes vapores, navios mercantes, baleeiros, transportes de longo curso — a vida do mar sempre cruzou, sem cessar, as nossas águas. Da Fajã Grande, dizia-se que se ouviam os galos cantar na América. E se era exagero, simbolizava uma verdade mais funda: nunca fomos periferia no espírito, mas vizinhança ativa de outras margens.
Muito antes da ligação regular ao Faial, estabelecida apenas por volta de 1860, já descendentes dos primeiros colonos abriam o Atlântico com o ímpeto de quem busca destino. Frei Diogo das Chagas, no início do século XVII, identifica pelo nome aqueles que partiram para o Brasil e para as Índias de Castela. Mais tarde, o temor do serviço militar — marcado pelo trauma das lutas liberais , pelas descrições ficcionadas das guerras, pela dureza da vida da terra, pela memória viva da pirataria — levaria muitos mancebos a fugir. Em meados do século XIX, dos jovens convocados no concelho das Lajes, metade já se encontrava “em parte incerta”.
Há relatos impressionantes. Amputavam-se dedos a machado para jamais empunhar armas. Muitos embarcavam às escondidas, saltando à noite dos rochedos, para as muitas baleeiras americanas que procuravam víveres e tripulantes. Melville, em Moby Dick (1851), notou esse fenómeno: “não poucos homens das rochosas ilhas dos Açores vinham engrossar as tripulações que atravessavam o mundo”. Foi assim que António Jacinto Bastiana — António Joseph — acabaria por desembarcar até na Califórnia, dando seu nome, séculos mais tarde, à doença que o celebrizaria tristemente ( Machado Joseph).
Foi a miséria? Foi o peso de tributos injustos? Foi a inquietude do espírito insular? Foi tudo isso e mais. As Flores sempre dialogaram com a outra margem.
Continuidade de Centralidade
Hoje, a narrativa parece querer inverter-se: dizem-nos que somos periferia remota, local isolado, território a perder população e envelhecido no tempo. É verdade que a demografia preocupa, que a desertificação das duas ilhas do Grupo Ocidental é real, que o futuro se exige pensado. Mas será a classificação de “periferia” que melhor nos descreve?
Basta levantar os olhos.
Por estas águas continuam a passar velozes navios de carga que ligam continentes. Sobre este céu cruzam-se rotas de aviação que riscam o mundo. O mar que nos cerca é corredor global; não é um fosso isolador.
A distância existe — mas também a proximidade. A demora existe — mas também a civilização acaba por aportar. O silêncio existe — mas a História fala.
Entre Margens
As Ilhas das Flores e do Corvo continuam a ouvir os galos cantar do outro lado. Continuam a escrever, com humildade firme, a sua narrativa atlântica: feita de partidas e regressos, de ausências e esperanças, de um pertencimento que não se limita à geografia.
Somos margem, sim. Mas margem é lugar de encontro.
A nossa condição nunca foi a de periferia esquecida, mas a de ponte viva entre continentes — ponto de travessia, de memória, de resistência e horizonte. Numa vocação de centralidade.
O futuro não se constrói lamentando o isolamento — constrói-se reconhecendo a vocação atlântica que sempre foi nossa. E se tivermos de ser um “extremo”, que sejamos aquelas “terras distantes que mesmo pequenas fazem a Região, Portugal e a Europa maiores.
(Este artigo tem continuação)