Ora c’um Caneco

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores / JC

 

Os atuais “Canecos” da Fonte do Bastardo vêm entroncar com a minha família, da parte do Tio Júlio, numa tetravó, a senhora Barcelos, que fugiu para o Brasil, ainda era século XIX, grávida de meses, atrás do homem que a engravidou e de quem teve mais dois filhos. O meu bisavô Júlio, pai da minha avó Serafina, era irmão da minha bisavó Glória, mãe do meu avô José Libana, que se casou com a Serafina. A minha família tem destas coisas. Irmã do Júlio e da Glória, a Margarida viria a ser a matriarca de todos os Canecos que habitam a Fonte do Bastardo.

Venho a isto por causa de um filho dessa Margarida, o José, que conseguiu uma proeza, digamos, um recorde: era o homem mais gordo da freguesia. A sua barriga, considerada a perspetiva baixa de quem tinha quatro ou cinco anos, podia assemelhar-se à lua grande que, por certas manhãs da nossa infância, aparecia ao fundo da Canada Funda. Era descomunal, isso sem pretender fazer “body shaming” do tio José Silva (vulgo Caneco), por quem hoje, muitos anos depois da sua morte, ainda nutro uma inviolável simpatia. O homem era mesmo uma boa pessoa. Não era essa, no entanto, a imagem que a arraia miúda da Fonte do Bastardo nutria por ele.

Terá sido pelos anos cinquenta do século passado que a sua fama se alastrou pela freguesia e povoados limítrofes. Imagino agora, com os meus botões, uma mãe a dar sopa ao filho de quatro ou cinco anos. O rapaz não a quer comer e faz birra. A mãe, em tom de aviso, terá dito ao filho: “Vês a barriga do tio José Caneco? É daquele tamanho porque está cheia de pequenos como tu, que não querem comer sopa. Qualquer dia ele come-te a ti também. Já viste?” O rapaz deverá ter comido a sopa de um trago e a mãe, aperaltada no seu vestido melhor, à saída da missa do domingo seguinte, ali, no adro ventoso da igreja, terá contado às amigas a receita mágica que fez o filho engolir a canja.

É possível que os rapazes e as meninas da freguesia tenham começado a comer melhor do prato, isso não sei. O que sei é que o tio Caneco ganhou uma fama que não esperava. Contavam-se, entre a canalha, histórias misteriosas do tio José, dos caldeirões que devia ter atrás da casa velhinha onde vivia, da forma como apanhava os miúdos, todos evitavam o encontro fatal com o tio José.

Quando cheguei aos quatro ou cinco anos, ali por princípios dos anos 70, já o tio José Caneco era o terror da freguesia e arredores havia muito tempo. Recordo um dia, dia de sol abundante, quando eu, de mão dada com o irmão mais velho, subia da casa dos pais até à casa dos avós, ali, na vetusta Canada do Biscoito. Virámos a esquina do tio Benjamim e eu deparo-me com o armagedão: à nossa frente, aí a cinco ou seis passos, jazia, de pé, solene, sorridente e absolutamente terrível, o corpo imenso de José Caneco. Abriu os braços, provavelmente para nos fazer uma festa, mas eu vi nesse gesto o princípio do meu fim, as suas manápulas, o caldeirão detrás da casa, os dentes prontos a abocanhar, os olhos de um dragão que cospe fogo. Só me lembro de fugir, aos gritos, calcanhares a baterem-me no traseiro, caminho abaixo, canada acima, para os braços de minha mãe.

José Caneco, nesse longínquo tempo e nessa velha Fonte, representava para nós a súmula de todos os medos. Escapávamos pelos atalhos quando pressentíamos que ele andava pelo caminho, éramos ameaçados pelos pais com o José Caneco quando as traquinices tomavam conta de nós. Um dia caiu-me o queixo quando vi meu pai, à boca da Canada do Engenho, a falar amigavelmente com ele, como se o meu bondoso progenitor fosse um grande amigo daquele monstro. Foi uma crise.

Valha-nos Deus que a gente, de vez em quando, cresce. E eu fui um dos que cresceram. E quando cresci, apareceram-me na retina da alma outros medos, provavelmente tão tolos como este, mas eu não tinha mais medo do tio José Caneco, já velhinho. Tive então a oportunidade de privar com ele e descobri uma pessoa de extraordinária bondade, de um carinho muito afetuoso com os netos e as crianças em geral. Enfim, o perfeito oposto da ideia que a minha infância fazia dele. Muitas vezes dei comigo a pensar: “como foi possível uma freguesia inteira fazer de um santo um monstro?” Sim, ainda hoje me espanto com esse processo sociológico de arranjar uma espécie de bode expiatório para onde vão todos os medos. O tio José Caneco era uma das melhores almas lá da terra e, quando morreu, verdade seja dita, já as crianças não tinham medo dele. Mas ele aterrorizou, sem querer, bem à vontade, duas gerações.

E agora reparem, estimados leitores: não foi exatamente isso que fizemos com Deus? Não tivemos, por gerações e gerações sem fim, uma imagem aterradora de um Deus colérico, castigador e dono do lugar mais execrável que o ser humano imaginou, o Inferno? Não fizemos de Deus um tio José Caneco de dimensões infinitas? Ainda gostava de fazer umas contas que, vá lá, me parecem impossíveis: no tempo em que as igrejas se enchiam de fiéis, quantos iam à missa só porque, se não fossem, iam parar ao inferno?

*Este texto foi publicado esta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Dorsal Atlântica.

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