Coitadinhos dos meninos pobrezinhos

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores

 

Já é trivial dizer que Jesus foi um sem-abrigo em Belém e um refugiado no Egito. É já um lugar comum e bolorento fazer presépios com Meninos-Jesus cheios de mensagens sociais, como aquele padre espanhol que colocou na manjedoura um Menino Jesus igual à criança que morreu numa praia da Turquia, ou aquele padre americano que colocou, na manjedoura do presépio da sua igreja, um Menino Jesus bebé hispânico, envolto numa toalha e cheio de frio, ou até aquela foto, colocada à porta de uma igreja em Itália, onde um casal de sírios, ele com uma criança às costas, atravessa uma fronteira armadilhada, com a frase por baixo da foto: “O Natal acontece todos os dias sem darmos por isso”.

Estas são ideias, ao que parece, de uma elite progressista, senhores bem-pensantes, que usam a religião para fins sociais politicoides e que, no fundo, não têm fé e estão, de alguma forma, alinhados com a cultura “woke”. Esses presépios são, no dizer de alguns, distorções da história, da história verdadeira de Jesus, tal como nos trouxe a tradição.

Um presépio, numa casa cristã ou numa igreja católica, deve ser um presépio. Um menino Jesus rechonchudinho e feliz, olhos azuis e cabelos louros, que sorri, iluminado, para a sua mãe, ajoelhada na sua frente, com uma túnica branca impecável e um manto azul celeste e para o pai adotivo que, de manto castanho e barbas perfeitas da mesma cor, segura, embevecido, um cajado de buxo onde terá florido um lírio branco. Um burro e uma vaca sorriem, bafejando, com o calor do seu hálito perfumado, o Menino Jesus, deitado numas palhinhas douradas que cheiram a peónia e a magnólia. Já ao longe se veem os Magos, de brocados de ouro e tiaras reais, dobrados sobre si mesmos em cima de sumptuosos camelos. Os pastores já estão à entrada da gruta, trazendo cordeirinhos brancos e felizes. Um galo canta sobre a luminosa gruta, uns sinos, sobre o presépio, já dobram a alegria do nascituro. Há um cheiro a pinheirinho de Natal e umas velas “Yankee Candle” que espalham aquele suave odor a floresta nórdica. Uma violenta árvore, agressivamente carregada de luzes, fios, laçarotes e bolas planetárias, encimada por uma estrela ainda mais violenta, arremata o quadro daquilo que deve ser o Natal. Jesus terá então nascido num estábulo (ou gruta) tão fofo que, para ser hotel quatro estrelas só faltava a televisão que, nalguns lares, até lá está, para distrair o Menino do tédio das horas. Foi exatamente assim que Jesus nasceu, não me venham com histórias.

Mais de dezanove séculos depois, juntou-se à festa o idoso, já que o Menino Jesus não bastava. Veio como funcionário da Coca-Cola e acabou por acaparrar quase todo o Natal, deixando o Menino Jesus substancialmente desfavorecido. A sua estratégia foi genial, uma vez que juntou as duas melhores coisas do Natal: os presentes e as crianças. Presentes para as crianças e o presépio ficou ainda mais verdadeiro, ainda mais histórico, com embrulhos vermelhos envolvidos por laços dourados nas costas da gruta onde Jesus já não consegue dormir. Encher as crianças de presentes, encher o mundo de presentes, não existir, mas colorir a infância dos meninos com sonhos e avisá-las de que não devem esquecer-se das crianças pobres, coitadinhas.

A imagética do Pai-Natal é estonteante. Vem da lapónia, num trenó de renas, das quais uma se chama Rodolfo, sobrevoando as cidades frias e belas da Europa e da América do Norte. Não tem combustível para chegar a África ou às crianças da Coreia do Norte e do Bangladesh, da Índia e do Turquemenistão. Sobrevoa os telhados e procura chaminés, aquelas que têm lareira, para lá depositar as ofertas devidas aos meninos que mais precisam delas: os filhos dos bairros menos sociais da Europa e da América do Norte.

A melhor parte do filme é aquela em que se diz que o Pai-Natal tem uma lista de meninos que se portam bem ou mal. Às vezes os meninos escrevem-lhe missivas, declarando o bem que têm feito e pedindo um presente a condizer. A cada um o Pai-Natal dará conforme as suas obras e essa lista é bem mais decisiva do que a de Schindler.

No tempo em que era o Menino Jesus a dar ofertas, normalmente bem mais pobrezinhas, também havia uma lista, que ele usava abundantemente, mas que foi substituída pela do Pai Natal sem muitos remorsos: era a lista das crianças pobres. Essas, na espiritualidade do Pai Natal, não entram. Não se portam bem nem mal, são os fantasmas invisíveis de todos os Natais. Já nem dó se tem delas.

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto

num sótão num porão numa cave inundada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto

dentro de um foguetão reduzido a sucata

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto

numa casa de Hanói ontem bombardeada

(David Mourão-Ferreira)

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na coluna Dorsal Atlântica.

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