A arte de fazer-se Igreja no coração do atlântico

Por Carlos Correia

Foto: cartaz do evento

A questão da memória faz parte intrínseca da essência da Igreja. O «fazei isto em memória de mim» está no seu ADN. Quando o Nazareno, que é a cabeça do corpo místico, naquela hora, unindo a sua palavra aos seus gestos eucarísticos, concentrou a oferta integral da sua vida partida e derramada por nós, no gesto da distribuição do pão e do vinho pelos que ali estavam com Ele, tornou-nos participantes da edificação do Reino. Em comunhão com Ele, enxerta-se em nós a graça para a tarefa de O construirmos. A sua humanidade é o rosto humano de Deus e o nosso rosto divino. Assim, devemos prolongar no tempo e no espaço o que Ele começou e completou. Porém esta memória é perigosa, pois não existe sem Páscoa. O rosto do ressuscitado transfigura o rosto repelente do ensanguentado. Nada de Adónis com a sua delicodoce musculatura. Ainda por cima veio o inimigo e no campo da memória semeou a praga, ou seja, a alzheimer. Lentamente a memória foi substituída pelo escrúpulo do rito, uma excrescência sem alma, espírito ou corpo. Gestos vazios ancorados num passado distante, mítico e lendário. Adoecemos à sombra de palavras, que se repetem, vazias e estragadas pelo desuso ou mau uso.  Onde está enraizado o corpo da Igreja? No caminho feito com o Senhor da messe, pelas ruas, acudindo aos que dormem ao relento, ou abrigados em casas devolutas? Os nossos sapatos transparecem as nossas opções de missão, refletem o atalho cheio das seringas dos sedentos de Deus, como os sapatos de Van Gogh o seu sacrifício?

Celebramos 490 anos da criação da Diocese de Angra. A Biblioteca Pública associou-se ao evento, procurando tornar presente o dia a dia das grandes instituições ao longo dos séculos, como o Cabido de Angra, órgão singular de colaboração na administração desta Diocese. Quisemos estabelecer uma exposição que focasse sincrónica e diacronicamente, o efeito dessa osmose. Criámos um jogo interativo que tem gerado grande entusiasmo entre os que nos visitam. Estamos a montar outra ferramenta de informação: uma exposição virtual desta efeméride, para permanecer acessível e ao alcance de todos. Uma das grandes reservas da Igreja é a sua cultura, que nos moldou como povo, nos uniu em tempos egrégios onde imperou a tormenta, a neblina, sombras e luz.

A memória é alavanca, irriga o discernimento, atualiza o mestre que cura, que não exclui ninguém, que vai até ao último dos últimos para o elevar e retirar dos seus nadas. É adaptação, renovação, leitura dos sinais do tempo e ação. É uma ortoprática. O cabido procurou, no espírito do tempo, adjuvar os bispos ou na falta deles, na conservação do que se pensava ser a vida do corpo da Igreja.

O Cabido de Angra, a Diocese, são produto da disciplina de Trento e muito se fez com o que se considerava ser a melhor forma de alimentar os crentes. Agora estamos em mudança de época. Tudo existe à velocidade da luz. O Vaticano II foi ontem, e hoje devemos fazer pontes, a todos os níveis. O ser humano só se reconhece na dinâmica do encontro. A exposição é uma ponte que realiza, aqui e agora, o encontro. Que empatias promovemos? Ainda sonhamos? O campo da realização cultural, da criação e do criado, é território diocesano. Onde estão os interessados? Esperam na ociosidade? E isso é esperar, porventura? Porque não cresce a maiêutica do Livro no ginásio da alma? Os dinamizadores das paróquias agilizem uma agenda cultural interativa, que inclua uma participação ativa e consciente. O Cabido de Angra fez 490 anos. Algumas artérias da sua história estão patentes na exposição, que termina a 15 de setembro. Assim se chegou a um degrau (entre outros possíveis) do conhecimento, e este transfigura-nos a mente e o coração. Assim funciona a extraordinária força da memória.

 

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