A contradição do espírito

Por Francisco Maduro Dias

Maduro Dias, presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz

Entre a Páscoa e a Trindade temos, por todas as ilhas dos Açores, as festividades e comemorações em honra e louvor do Senhor Espírito Santo. Algumas outras festas prolongam, depois, pelo Verão adentro, os mesmos sentimentos e intenções.

Vale a pena aproveitar estes tempos de Maio e Junho para pensarmos um bocadinho no seu profundo significado social, cultural, político, comunitário, para além, evidentemente, do imenso valor religioso.

Vale a pena pensarmos, também, na enorme responsabilidade que temos sobre os ombros, enquanto pessoas que gostam, sentem, pensam, aclamam, festejam essa invocação, nestes tempos de agora e com as dificuldades que nos rodeiam.

Vivemos um tempo onde o primado do eu individual e voltado sobre si mesmo se transformaram na norma. Seja no que se gosta, no que se quer, no que não se tolera, no que se exige, em qualquer situação das muitas que nos rodeiam, a ditadura do egoísmo instalou-se, no dia a dia actual, como sinónimo de liberdade.

Estranho sinónimo, porque essa forma de ver exige o silêncio do outro lado, e até mesmo a concordância e aceitação, esquecendo que, pelo menos desde 1789, a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro, ou seja a simetria.

Ora, o que as dezenas e dezenas de comissões, de impérios, de mordomos, de promessas, de festejos, proclamam por estes dias, de Santa Maria ao Corvo, é que todos somos chamados a festejar!

E a festejar como? Em grupo! Partilhando mesa, comida, alegria, proximidade! Juntos e não separados! Porque a festa, esta festa de modo muito especial, exige que estejamos mesmo juntos, fisicamente, que falemos uns com os outros, que nos demos a conhecer a quem conhecemos menos ou nem sabemos quem é, mas que, de repente e nesses momentos, está do outro lado da mesa, partilhando, connosco, nessa ocasião, sopas, vinho, carne e pão.

A contradição com o tempo presente surge imediata. No supermercado e sem falar com alguém, é pegar nas coisas, pagar e sair. Aquela vozinha melosa a sair da máquina não engana ninguém. Quase deixámos de ir ao cinema e preferimos escolher e ver um filme, em casa, no sofá. Até podemos telefonar a alguém e discutir o filme que cada um viu, separadamente e sozinho, em sua casa.

Entre os que atravessam as ruas com auscultadores nas orelhas, os que encomendam comida para comer em casa, os que compram nas lojas da internet, ou os que vão às caixas multibanco, tudo em redor aponta para um viver sozinho, sem os outros, e o sistema como que nos propõe e ensina a viver sós, a chorar ou a rir, sós, e acabamos a apelidar de amigos gente que nunca esteve ao pé de nós, que nunca tocámos.

É aí que reside a maravilha as Festas do Divino Espírito Santo, contradizendo essa proposta contemporânea da solidão egoísta, argumentada no direito à diferença, e onde a partilha, a fraternidade, a igualdade, a liberdade, a alegria, existem à nossa espera, apenas exigindo essa convivência real e partilhada.

Porque aqui nos irritamos, alegramos, contamos piadas acerca, brincamos com. Há gente viva, com quem discutimos e criamos coisas em conjunto, uns ao lado dos outros, gritando, rindo, discordando, concordando, mas fazendo, ultrapassando e realizando… em grupo e ao pé uns dos outros.

Estranham-se as diferenças de partida, mas vão-se aceitando e misturando, porque queremos, a todo o custo, criar espaços de partilha, de comunhão e de chegada. O querer ficar sozinho e afastado não faz parte desse mundo para onde todos são chamados e onde desejamos que se sintam implicados, cada um a seu modo, mas implicados. Todos.

É nossa responsabilidade continuar a viver, manter e comunicar tudo isto, com verdade e humildade, a quem nos rodeia e a quem estiver entre nós nestes momentos soberbos de Humanidade.

 

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