“A formação sacerdotal não passa somente por títulos académicos” e “a questão intelectual não pode ser tão sobrevalorizada em detrimento de outras dimensões, especialmente a humana e espiritual”

Reitor do Seminário Episcopal de Angra, padre Hélder Miranda Alexandre, em entrevista ao Igreja Açores

Numa semana particularmente importante em que decorre e Semana de Oração pelos Seminários, com os seminaristas fora de casa em missão, e em vésperas da Assembleia Plenária dos bispos, que começa dia 7, durante a qual vão ser discutidos assuntos relacionados com a adaptação da Ratio Fundamentalis de 2016 em Portugal, documento fundamental para a vida dos seminários, o Reitor do Seminário Episcopal de Angra reflete sobre os desafios da formação; o inverno vocacional; as estratégias de uma pastoral de conjunto que possa mitigar a ausência de vocações nas dioceses; dos factores que a motivam e do momento particularmente difícil que a igreja enfrenta com a problemática dos abusos sexuais sobre crianças e pessoas vulneráveis.

O sacerdote, que é reitor há 10 anos, desenha ainda o perfil do sacerdote nos tempos atuais: “As pessoas procuram homens de Deus, por isso ricos de humanidade, de sentido de serviço, generosidade e competência, mas que sejam sobretudo ricos de Deus! Não podemos ser “funcionários do sagrado” e muito menos cair na tentação do clericalismo. A sabedoria de um padre acontece com o povo de Deus, o estudo dos homens e a intimidade com o Cristo Vivo!”

  

Vivemos a Semana de Oração pelos Seminários. A mensagem de D. António Augusto Azevedo centra-se muito no testemunho e na vontade de anunciar Jesus, mobilizando, desde logo os jovens, para a missão. Vivemos uma crise de vocações há muito tempo, que chegou agora aos Açores… Que fatores estão a contribuir para isto?

Geralmente, as mudanças chegam mais tarde aos Açores, e depois consolidam-se. Vivemos um ambiente de secularização e consequente descida da prática dominical. Vemos assembleias dominicais envelhecidas e pouca presença juvenil, apesar do novo fulgor que poderá advir da JMJ 2023. A crise torna-se profunda e grassa por toda a Europa. Acresce a isso, o inverno demográfico que vivemos na Região, que agrava particularmente a nossa situação. O tempo das Igrejas vazias é uma realidade e consequentemente a falta de vocações… Por outro lado, os jovens têm hoje muitas mais ofertas académicas e profissionais que exercem um forte apelo e desviam para outras metas, também elas muito meritórias e positivas. Por muito que custe admitir, faltam igualmente mais testemunhos positivos e felizes.

O que é que transformou os Açores de um momento para o outro para deixarmos de ser uma terra de vocações?

Posso acrescentar que as vocações consagradas exigem uma particular generosidade e desprendimento que não é fácil de assumir. É verdade que outras vidas também, mas estas integram valores que não estão na moda ou dizem pouco aos jovens e famílias de hoje. Aquilo que nos vinha por transmissão familiar está a desaparecer. No fundo, a crise das vocações é também uma crise de identidade cristã, apesar da maioria católica, que, muitas vezes, não passa de estatística.

O Seminário vive uma das suas maiores crises de sempre em termos de novas adesões, antevê medidas concretas que possam alterar esta situação?

Não é fácil encontrar soluções, mas teremos de ser mais interventivos, atualizados, e procurar chegar mais longe. Para já vamos alargar a equipa da pastoral vocacional, e envolver outros sacerdotes e colaboradores. Não podemos baixar os braços! A mensagem a passar tem de ser positiva e não de crise. A história ensina que essas baixas sempre aconteceram. Por isso, temos de ter uma visão global e serena e não avançar para decisões precipitadas.

Estaremos mesmo diante da inevitabilidade de nos termos de juntar a outros Seminários, como fizeram já outras instituições?

Penso que o caminho de futuro poderá ser esse, mas não somente isso. Sou da opinião que todo o país se deveria juntar, refletir profundamente e avançarmos para horizontes mais largos. Não nos podemos contentar com o horizonte diocesano. Por que não seminários especializados em etapas formativas? Não podem existir dioceses de primeira e de segunda. Somos tão pequenos e os problemas da vizinhança devem ser de todos. Se há dioceses sem clero, as outras terão de ir em auxílio. Por que não partilharmos competências, formadores e professores? Se quisermos, não há distâncias, apenas diferenças. O caminho ainda é longo…

O facto de vivermos em sede vacante há quase um ano pode ter interferido nesta questão?

Penso que não é um fator decisivo. Pode desmotivar um pouco, mas quem quiser trabalhar tem sempre terreno pela frente.

No relatório sinodal enviado pela CEP para Roma há uma crítica e um desafio para a formação de sacerdotes. Como a vê e como podemos formar melhores sacerdotes para os tempos de hoje?

Penso que a formação sacerdotal não passa somente por títulos académicos. Isso não resolve as inúmeras lacunas. Há que assumir que a formação no Seminário é apenas inicial. Um padre que não se atualize, depois do seminário, fica ultrapassado em pouco tempo. A minha experiência de 10 anos como reitor ensina-me que a questão intelectual não pode ser tão sobrevalorizada em detrimento de outras dimensões, especialmente a humana e espiritual. As pessoas procuram homens de Deus, por isso ricos de humanidade, de sentido de serviço, generosidade e competência, mas que sejam sobretudo ricos de Deus! Não podemos ser “funcionários do sagrado” e muito menos cair na tentação do clericalismo. A sabedoria de um padre acontece com o povo de Deus, o estudo dos homens e a intimidade com o Cristo Vivo!

Na próxima assembleia plenária da CEP- de 7 a 11 de novembro- os senhores bispos vão finalmente debruçar-se sobre a regulamentação nacional da Ratio Fundamentalis, aprovada há já quatro anos. O que é que se pode esperar desta adaptação, sendo que há toda uma mudança de filosofia de formação…

Posso afirmar que também dei o meu pequeno contributo, como reitor. Não vai ser a solução dos todos os problemas, mas procura adaptar a Ratio Fundamentalis de 2016 à realidade nacional. Contudo, só terá sucesso se todas as dioceses e as instituições académicas se comprometerem com um plano. Por isso, o momento presente de reflexão dentro da CEP é particularmente importante. Na verdade, tem elementos preciosos acerca das várias dimensões da formação, embora não seja um documento perfeito. Por exemplo, dá uma atenção especial ao período propedêutico e à pastoral vocacional, ao amadurecimento humano, procura evitar que essa formação se faça por automatismos, que não seja sobretudo intelectual, que se prolongue para além do seminário, no acompanhamento dos padres novos…. Enfim, pode ser um ótimo instrumento para nos lançarmos mais além!

Há o pressuposto da exigência que desde sempre fez parte dos critérios formativos. Mas agora há igualmente uma exigência que decorre do contexto, nomeadamente dos abusos sobre menores dentro da Igreja. Como encara esta problemática e de que forma os seminários poderão ser uma alavanca decisiva para evitar que este problema continue?

Estamos num momento delicado da Igreja em Portugal e há que agarrar a formação sacerdotal com a máxima seriedade e competência. A realidade ensina-nos que essa falhou nos casos que vão surgindo. São histórias muito lamentáveis e deve-se procurar fazer justiça e reparar os danos causados às vítimas. Tem sido uma vergonha para toda a comunidade cristã. Os danos colaterais são também terríveis. Atingem particularmente a pastoral vocacional. Por isso, os Seminários tornam-se instituições centrais na renovação. Temos de ser firmes nas decisões, muito atentos e perspicazes. Por exemplo, mais do que nunca, os especialistas em ciências humanas tornam-se imprescindíveis. A espiritualidade tem de assentar em homens psicologicamente equilibrados e sem a mínima suspeita desse tipo de patologias. Infelizmente a natureza humana está manchada pelo mal, mas esta crise ensina-nos que temos de dar o máximo, sermos mais competentes e eficazes, e que nunca poderemos baixar a vigilância.

O que espera desta semana?

Esta Semana dá-me sempre muita esperança. Lançam-se sementes. Até para os seminaristas é um período de crescimento, num terreno alargado a outras Ilhas. Acredito na oração e penso que o Espírito Santo nos ensinará a trilhar caminhos. O tema “não te envergonhes de dar testemunho de Cristo” (2 Tim 1, 8) é muito sugestivo, pois apela à coragem para continuar a missão, num tempo tão difícil. A história da Igreja é uma história de valentia e testemunho!

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