A invasão dos Bárbaros

Pelo padre José Júlio Rocha

Florença. Só este nome arrepia. Falo de uma das cidades mais belas do mundo, certamente o ícone incontestável do Renascimento. Visitar Florença é banhar a alma em arte. Não há um edifício, uma rua, uma pedra que não nos diga do esplendor da arte, da harmonia das linhas, da criatividade dos seus génios, da poderosa riqueza de uma cidade que elevou o espírito de uma civilização a alturas pouco conhecidas. Presumo não haver no mundo tanta arte por metro quadrado como em Florença.

A arte é a expressão suprema do homem. E não é por acaso que arte e Deus têm muitas coisas em comum e eu talvez não conheça forma mais sublime de ver o ponto de vista de Deus do que a arte.

Nos séculos XIV e XV Florença prosperou com a dinastia dos Médici, a família que se confunde com a cidade. Foram, eles e outros, mecenas incomparáveis de imensos pintores, escultores, arquitetos, poetas, elevando a cidade a um nível cultural e artístico que ainda hoje nos pasma.

Terei visitado Florença mais de dez vezes. Enfrentei, com a coragem de um derrotado, a imensa mole do Duomo de Santa Maria del Fiore, catedral de Florença, a mais bela igreja do mundo por fora, toda ela feita de renda de mármore, branco, rosa, verde. A sua inatacável cúpula de Brunelleschi, a sua torre tardia, que se ergue ao céu pontilhada de miríades de rendinhas no duro mármore, o seu batistério externo, com a porta da Glória, toda em ouro. Visitei o museu do Palazzo della Signoria, edifício emblemático da transição do gótico para o renascentista. Entrei, deslumbrado, na Galleria degli Uffizi, a mais rica pinacoteca do Planeta, com Caravaggios, Botticellis, Miguéis Ângelos, Leonardos da Vincis, Raffaellos, um museu único.

E fui ver a Galleria dell’Accademia, museu de escultura, em grande parte dedicado a Miguel Ângelo, onde – já devem ter adivinhado – se exibe uma das mais belas, conhecidas, poderosas e incontestáveis esculturas que um ser humano alguma vez produziu: a estátua de David de Miguel Ângelo.

Originalmente encomendada como parte de uma série de outras estátuas de profetas e heróis bíblicos, David estava destinado a decorar uma das fachadas de Santa Maria del Fiore. Mas os seus cinco metros de altura não permitiram. Ficou na rua, durante séculos, à frente do Palazzo della Signoria, até que uma fratura no calcanhar o levou para a Accademia, deixando uma cópia igual no sopé do Palazzo.

Em 2020 David foi “clonado” numa impressora 3D, para pontificar, nu, como Deus o mandou ao mundo, na Expo 2021 no Dubai, um país muçulmano que, como qualquer país muçulmano, tem uma ética bastante repressiva.

A escultura apresenta David, com a funda pelas costas abaixo, a preparar-se, completamente nu, para o embate com Golias. Miguel Ângelo quis, com o seu génio incomparável, desenhar o corpo humano perfeito, harmónico, tonificado, símbolo da perfeição, tudo isto características do Renascimento. É indiscutivelmente uma obra de arte cristã e não causou escândalo nenhum, há quinhentos anos, a sua nudez.

O David de Miguel Ângelo é um dos emblemas incontestáveis da arte. Ponto final.

Tallahassee é a capital administrativa da Flórida, Estados Unidos. Segundo o jornal diário Tallahassee Democrat, a diretora da Tallahassee Classical School, Hope Carrasquilla, renunciou esta semana após um ultimato do presidente do conselho escolar. Porquê? Porque a referida professora e diretora, numa aula de arte, terá mostrado uma imagem do David a crianças do sexto ano de escola. Um pai ficou revoltado por a professora mostrar pornografia a crianças. Mais dois pais consideraram que a professora os devia ter informado previamente sobre um tema polémico, como mostrar um nu artístico.

Nem para ficar embasbacado, de boca aberta tenho forças… uma obra de arte que há quinhentos anos pontificava nos frontais de uma igreja, hoje, em pleno século XXI, é pornográfica. É um sintoma. O sintoma de uma distopia a que estamos a chegar, uma nova moral puritana, perversa, execrável, está a invadir-nos sem darmos por isso. Há uma sanha estúpida de proteger as crianças de traumas que chega a disparates desta dimensão.

Uma criança, digamos, normal, passa demasiado tempo em frente a ecrãs de televisão, de computador, de tablet, de telemóvel. Passa-o, frequentemente, em jogos psicadélicos e violentos, que destilam ódio e incentivam à agressividade, ao autismo ou à hiperatividade. Na sagrada Flórida as crianças têm acesso às armas dos pais, aos discursos de ódio e racismo, a realidades virtuais que disturbam os seus cérebros, mas o pirilau do David é que lhes vai dar cabo da vida.

Quando a arte, a verdadeira arte é posta em causa, é toda a civilização que o é. Hitler queimou e destruiu milhões de obras de arte que contestavam a sua ideologia. Estamos a fazer o mesmo e pensamos, como Hitler pensava, que estamos a construir um mundo melhor.

Deem-me outro planeta…

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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