As Despensas de Rabo de Peixe – consciência patrimonial

Por António Pedro Costa

Foto: Igreja Açores

Em Rabo de Peixe, mesmo no coração da baleia como dizia Gaspar Frutuoso, há uma tradição que, apesar de enraizada em práticas antigas, continua a pulsar com uma vitalidade surpreendente: as despensas dos pescadores.

Esta manifestação cultural, que até aos anos 80 do século passado se confinava à zona piscatória, foi ganhando expressão em toda a vila, tornando-se um traço marcante da identidade local, entrando nos costumes das gentes da localidade, em que desde a tenra idade se baila a um ritmo estonteante.

Trata-se de uma tradição que resulta de um encontro de culturas e de fé, nascida da adaptação de antigos costumes magrebinos, trazidos por pelos primeiros povoadores desta ilha, que, ao “converterem-se” ao cristianismo, encontraram na festa do Espírito Santo uma forma de celebrar a espiritualidade de maneira própria. É este sincretismo, simultaneamente improvável e comovente, que confere às despensas de Rabo de Peixe ainda hoje em dia um carácter único e profundamente simbólico.

Durante estas festas, os chamados balhos dos pescadores animam ruas e largos com música, dança, comida abundante e um sentido comunitário difícil de igualar em toda a ilha. São celebrações que duram horas e que mantêm particularidades antigas, passadas de geração em geração com uma fidelidade quase religiosa.

O respeito pelas tradições, pelo ritmo da festa e pela partilha dos alimentos são elementos que reforçam o espírito solidário e comunitário, constituindo um orgulho local, pela sua especificidade, que mesmo copiado em outras localidades não conseguem viver o âmago destas festas.

O mais notável é o modo como esta prática, outrora restrita a uma comunidade específica, foi adotada por toda a vila. Hoje, são muitos os que, sem terem qualquer ligação direta à pesca, participam e promovem as despensas como parte da sua própria herança cultural. É a demonstração clara de que a cultura popular, quando vivida com autenticidade, tem o poder de unir e integrar.

Não surpreende, por isso, que cada vez mais muitos estrangeiros se deixem fascinar por esta expressão folclórico-religiosa. Chegam a Rabo de Peixe com curiosidade e integram as rodas dos bailaricos desajeitadamente, mas partem com espanto e admiração. Para muitos, é impensável que, num mundo cada vez mais globalizado e homogeneizado, resistam tradições tão singulares, intensas e fiéis às suas raízes, como são as despensas dos pescadores de Rabo de Peixe.

As despensas são um exemplo extraordinário de como uma comunidade pode, a partir das suas origens humildes e das suas complexidades históricas, construir um património vivo e vibrante e num tempo em que tanto se fala de identidade e pertença, talvez tenhamos todos algo a aprender com esta vila açoriana e com a sua forma única de celebrar a fé, a memória e a vida.

De facto, elas constituem um exemplo paradigmático da resiliência e adaptação das manifestações culturais populares no seio de comunidades rurais marcadas por complexos processos históricos, religiosos e identitários, adquirindo um estatuto de elemento identitário transversal, tanto valorizado pelas populações locais, como reconhecido com assombro pelos visitantes.

Muitos estudiosos e testemunhos orais referem a origem desta tradição dos pescadores, como uma reinterpretação de práticas festivas dos mouros que aqui vieram, permitindo-lhes integrar-se na comunidade sem abdicar de certos elementos culturais de fundo, dando origem a uma expressão ritual com características únicas no panorama etnográfico açoriano. Estes elementos mantiveram-se surpreendentemente estáveis ao longo do tempo, o que atesta uma forte consciência patrimonial.

Hoje, as despensas de Rabo de Peixe constituem não só um importante objeto de estudo para a antropologia cultural e religiosa, mas também um património imaterial de grande valor para a compreensão das dinâmicas de coesão e resistência cultural.

Esta tradição que se viveu no fim de semana passado em Rabo de Peixe e que se repetirá na festa da Trindade deste final da semana representa uma forma notável de continuidade cultural, onde o passado e o presente dialogam de forma orgânica, com os gestos herdados de uma fusão cultural rara, mas que aquela preserva como uma festividade que conserva uma memória encarnada, uma identidade em ato, e uma espiritualidade que, sendo popular, não é menos profunda.

 

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