Pelo padre José Júlio Rocha
O XVI Encontro de Bispos de Países Lusófonos (Lisboa, 13 de setembro) debruçou-se, entre outros temas, sobre a questão migratória. No comunicado final, alínea d, pode ler-se: “Maior atenção ao acolhimento, proteção, promoção e integração dos migrantes e refugiados por parte das comunidades na diáspora, respeitando a sua diversidade cultural e a dignidade de cada pessoa e de cada família que migra, e lutando contra a legislação que atenta a estes princípios.” Posteriormente, Dom José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, pronunciou-se afirmando que não reconhece como católico quem é “contra imigrantes e promove a xenofobia”, lamentando que a legislação portuguesa sobre estrangeiros e nacionalidade “tenha mais proibição do que inclusão”.
Nem todos concordarão com estas ideias de Dom José, ainda mais por agora que o fenómeno migratório está na agenda do dia, com as mais díspares leituras sobre ele. Mas, no fundo, bem vistas as coisas, Dom José não podia dizer outra coisa. Tratava-se de afirmar simplesmente o que a Igreja tem ensinado ao logo da sua história: o profundo e inalienável compromisso da Igreja e dos cristãos para com o pobre em toda a sua dimensão. Um cristão que leia os Evangelhos embate frontalmente numa evidência avassaladora: o pobre, o doente, o pecador, o estrangeiro, o órfão, a viúva, o que chora são o alvo primário da misericórdia, da bondade e da própria vida de Jesus e, consequentemente, da nossa, enquanto cristãos.
Ora bem. O fenómeno migratório, como já afirmei bastas vezes, é um problema gravíssimo, que aumentará exponencialmente no futuro e que é necessário as nações debruçarem-se, em diálogo, sobre ele, porque é universal. Isto não faz do migrante um perigoso invasor nem da migração o fenómeno que vai destruir o mundo em geral e Portugal em particular. O discurso do medo – que consiste em espalhar a ideia de que Portugal está em perigo e é preciso salvar a Nação do perigo dos migrantes, como se eles fossem essencialmente criminosos que vêm sujar o nosso país e tirar os nossos empregos e impor a sua religião e os seus contravalores – é, definitivamente, um discurso xenófobo, infetado de teorias da conspiração, e que atenta frontalmente contra a Doutrina Social da Igreja e, muito mais do que isso, contra a essência do Evangelho. Um cristão não pode espalhar o ódio. E é de ódio, subliminarmente disfarçado de defesa e identidade, que estamos a falar. Mais nada.
O jornal “Expresso” publicou, na sua página de Facebook, a afirmação de Dom José Ornelas onde ele não reconhece como católico quem é contra pessoas migrantes e promove e xenofobia. Eis alguns comentários a esse “post”, escancarados para que todos pudessem ver: “Pode ser excomungado um destes dias… o presidente dos bispos não tem de julgar nem de influenciar as ideologias e as práticas com que os católicos se identificam”; “Esse senhor estava melhor calado, quer para ele quer para a Igreja”; “Leva-os para tua casa!”; “Esse senhor deve é resolver os problemas que tem dentro de portas, nomeadamente em matéria de pedofilia.”; “O bispo tem é que se preocupar com a pedofilia que existe dentro da Igreja”; “Um bispo alemão disse estarmos a ser invadidos e este faz esta afirmação”; “A Igreja católica vai ser varrida do mapa, fonte de aprisionamento e de retrocesso dos povos, juntamente com o socialismo e o comunismo”; “Quando eles impuserem a religião deles a Igreja Católica pode ir tentar pregar para Marte. As boas intenções lindas são pouco realistas”. Alguém, no meio deste emaranhado, foi – coisa muito rara nas redes – minimamente objetivo: “O que ele disse é elementar! A Bíblia não é compatível com o racismo!”
Havia muto mais. Bastem-nos estas mensagens para nos pormos a pensar a que velocidade a Igreja tem vindo a perder credibilidade quendo fala sobre questões sociais, de pura justiça social, de Doutrina Social da Igreja, de defesa dos mais pobres e deserdados. Desde o século XIX, quando a Igreja ficou em silêncio perante a “Questão Operária”, deixando-a na mão do marxismo, que a ela tem sentido dificuldades em compor um discurso social sem que seja acusada de se “encostar” a uma determinada visão política, de esquerda ou de direita. No entanto, falar dos pobres, dos deserdados, das grandes questões sociais, denunciar os pecados que bradam aos céus faz tão parte da essência da Igreja como o mistério da Santíssima Trindade ou o parágrafo mais importante do Código de Direito Canónico. A essência do discurso social é cristã, é evangélica, muito mais do que política. Os Evangelhos são o mais radical discurso sobre a dignidade humana e o amor para com os últimos que alguma vez se escreveu. Calar-se é renunciar a uma missão essencial da Igreja.
Por outro lado, reaparece em toda a linha, como muita gente já experienciou na pele, toda a violência e mentira que as redes sociais têm o condão de vomitar. Estamos a minimizar os impactos devastadores das redes sociais na nossa psicologia, nas nossas relações humanas, no tecido social.
Finalmente, a questão da verdade e da nossa adesão a ela. Foi-nos ensinado que “contra factos não há opiniões” e constatamos agora que “contra opiniões não há factos”. Estamos a regressar ao tribalismo nómada, em que os critérios de pertença eram bem mais importantes do que a verdade.
Um bela metáfora dos nossos tempos é o julgamento de Jesus perante Pilatos. É Deus a ser julgado pelos homens, a ser condenado pelos homens. Neste sentido, a apoteose dá-se quando Jesus diz que é testemunha da Verdade e Pilatos, do alto de todo o cinismo humano, dispara: “O que é a Verdade?”.
Condenado Deus, condenada a verdade.
*Este artigo foi publicado no Diário Insular na coluna Dorsal Atlântica, esta sexta -feira