Por Carlos Correia

Quando virá, Senhor, o dia em que apareça o Salvador, e soe o brado de alegria: Nasceu no mundo o Redentor? Relembro, sempre que bebo este cântico, a imagem apaixonada com que o Padre Piques Garcia, nosso professor de línguas clássicas e música no Seminário, deixava transparecer no rosto a vibração de alma que lhe causava a beleza da encarnação como símbolo de chuva: «Orvalhai lá do alto, ó céus, e as nuvens chovam o justo». A ligação a Isaías 55, 10-11 é metaforicamente lícita e pedagoga, mistagógica, isto é, descodificadora e reveladora de imagens e engrenagens simbólicas oriundas de uma atmosfera histórica, geográfica e culturalmente diferente, muito diferente da nossa. Assim como a chuva mergulha na terra para a tornar fecunda de sementes que deem pão para saciar a fome à humanidade, assim a palavra de Deus não regressa vazia, sem nada, ao coração do Senhor. O Verbo choveu na nossa carne, mergulhando até ao mais profundo do nosso ser para nos abastecer do pão da construção da sua imagem, que é o ser humano segundo o projeto do Criador. Nós tocamos com as nossas mãos no Verbo da Vida, o que tudo contém, tudo abarca, como quem toma uma bola de golfe nas mãos. Humanamente somos a sua imagem na nossa dignidade, razão, liberdade, capacidade de amar (capazes de Deus) e de assim edificarmos as nossas relações. Porém isto não basta, não serve de nada, se desistirmos da vigilância e da militância. E nada de militâncias fanáticas, sem fé no Senhor Jesus, sem o olhar treinado, o discernimento, a ação consertada e persistente.
É urgente encarnar. O cristão «faz de conta» é falso. O bom «católico», que tem azia à contemplação da palavra de Deus, que não questiona nem se deixa questionar, apático, minimalista, escrupuloso, muito cumpridor de ritos e automatismos, que sempre foram assim, mas não sabe porquê, fomos nós que o criámos, e quem quer que foi deixando que isto se tornasse um enorme embuste. Não podemos fazer crescer nada se encolhermos os ombros, assobiarmos para o lado, criticarmos beatos e beatas, e basearmos o pão do crescimento em liturgias cujo dinamismo desconhecemos de tão mecânicas e estéreis se tornaram, por falta de ouvidos que oiçam o que o Espírito diz às igrejas. E isto serve para todos, ninguém está isento desta tentação de apontar o dedinho aos outros.
A liturgia é um jogo, a sua essência é estar diante de Deus, como crianças, e assim brincar diante Dele, como diz Romano Guardini. A sua razão de ser é Deus e não o ser humano. «Viver liturgicamente, é – levado pela Graça e conduzido pela Igreja – tornar-se uma obra de arte viva diante de Deus, sem outro fim que estar e viver na presença de Deus. É cumprir a palavra do Mestre e «fazer-se criança». É, seja dito duma vez para sempre, renunciar à falsa prudência da idade adulta que para tudo quer encontrar um fim. É decidir-se a jogar, como David quando dançava diante da arca da aliança». Trata-se de uma sinergia teândrica (divina e humana). Adonai, o Senhor, criou-nos à sua imagem e semelhança (Jesus, o Verbo encarnado).
Como ensina a antropologia cristã de São Gregório de Nissa (mais atual do que nunca), não passaremos de um sonho falhado se não nos construirmos à imagem e semelhança deste arquétipo. A semelhança é da ordem da ação, é simultaneamente a meta e o processo de construção da imagem em nós, pela graça (a vida de Deus em nós) e pela caridade, que não se serve enlatada e formatada à medida das sobras e reciclagens dos modelos cristalizados do nosso tempo. Deus deu-nos um menino, um menino nos foi dado, o único modelo, não há outro. É desconcertante e fabuloso, criativo e provocador, o agir de Deus como lhe apraz, mas sempre em nosso benefício.
Como diz Mel Gibson, o criador da Lei está acima da Lei, mesmo sabendo que os seus não O receberiam. Cresceu connosco, brincou, correu, escondeu-se, esfolou-se, aprendeu a arte da marcenaria, amou até ao fim, ao máximo derramamento de si. Natal de Deus, proximidade, encontro, ponte, braços que nos levantam o corpo frágil, amordaçado, escravo, pecador, enfim sumamente ferido, e nos colocam aos seus ombros, nossa casa, nossa paz e plenitude. É urgente renascer, cantava alguém. A nossa missão é fazer crescer a semelhança de Deus em nós, desconstruindo, começando de novo, porque os grandes dramas da humanidade estão ao nosso lado. E assim como a semente dos fariseus foi entrando devagarinho, destruindo o que era genuíno e naive, à medida que se encolheram os ombros, alastrou o demónio da indiferença, ameaçando o fruto da mulher e a sua sementeira, deixando-nos apáticos, sem alma, num mundo frio, seco e estéril, espiritualmente moribundo. Chova o Justo.
É urgente renascer, sacudir o pó das sandálias e recomeçar cá por casa. Além de uma ortodoxia, o cristianismo é acima de tudo uma ortoprática alimentada no jogo litúrgico. O caminho sinodal encontra um ícone possível nos discípulos de Emaús e na reviravolta que se operou neles após o encontro com o ressuscitado. Curiosamente o Senhor levava consigo apenas uma pequena bolsa. Nómadas da fé, do amor e da esperança, fazendo frutificar o justo. Não há tempo para reclinar a cabeça, não é hora de banquetes, mas de frugalidade e resiliência. Ó nuvens chovei do alto e apareça o Salvador. Pela Igreja, uma Igreja viva, inclusiva, de portas escancaradas, um grande hospital de campanha com sucursais em toda a parte, sem mundos e fundos a não ser muito calor humano, muita capacidade de ouvir e puxar para fora do poço os sem nome de agora e sempre.