Pelo padre José Júlio Rocha
A humanidade tem oito mil anos de sedentarismo e várias centenas de milhares de anos de nomadismo. Portanto, apesar de toda a cultura e civilização, o nosso cérebro, o nosso corpo, o nosso subconsciente e os nossos instintos ainda estão habituados ao tempo em que vivíamos nas florestas e nas savanas, nas grutas e nas tendas, a carregar a vida de um lado para o outro, colhendo os frutos que a terra desse e caçando os animais selvagens. Vivíamos em clãs e tribos, e todos os nossos instintos se mantinham alerta porque o perigo morava ao lado.
Quando, por exemplo, encontramos uma pessoa estranha, a primeira reação subconsciente é ficar alerta: é inimigo ou amigo? É mais ou menos como os cães, quando vêm outro cão: alerta máximo, todos os sentidos em riste, ele pode ser amigo ou atacar a qualquer momento. É o nosso instinto antigo a defender-nos.
O outro, o diferente, aquele que não me pertence e a quem não pertenço, foi sempre objeto das mais variáveis conjeturas. Recordo-me de, quando éramos ainda adolescentes, por alturas lembradas como os bodos, as touradas e as festas da freguesia, nós, os locais, ficávamos indignadíssimos quando rapazes de fora vinham fazer olhinhos às miúdas da nossa terra: eram “nossas” e os outros não tinham que vir cá meter o bedelho. O sentido de pertença é instintivo.
Quando o outro adquire o epíteto de estrangeiro ou imigrante – de outra tribo, de outro clã, de outra raça – as coisas ainda se tornam mais difíceis. Há uma espécie de receio natural, territorial, instintivo, em partilhar a mesma terra com quem tem outro rosto, fala outra língua, tem outra cultura ou religião. Explorar esta tendência de pertença e segregacionismo sempre foi um problema na história da humanidade e hoje, neste início de um novo milénio, a fobia ao diferente tem sido bem explorada por teorias políticas que não são recentes.
Há um problema com a imigração no nosso país? Há, como há em qualquer outro país economicamente razoável. Como é que, normalmente, se resolvem problemas como este? Conversando, dialogando, procurando soluções. Todos estamos de acordo que é necessário regulamentar o fenómeno migratório, que se está a tornar cada vez mais premente, derivado sobretudo aos fossos de pobreza que estão aumentando, às alterações climáticas, às políticas criminosas de muitos países.
Desde já, o maior problema da imigração é a própria situação dos imigrantes ilegais, basta saber o que se passa em Odemira: hordas de seres humanos vivendo a desumanidade, escravizados e explorados até ao fundo da servidão humana, eles que tiveram de sair das suas terras para se salvarem a si e às suas famílias, como qualquer ser humano o faria. E, sim, o concelho de Odemira, onde quase metade é migrante, é um dos concelhos com o rácio de criminalidade mais baixo do país. Não. Os imigrantes não trazem o crime com eles. Este é um tabu, um mito urbano, uma mentira que muitos querem pintar de verdade. Um estudo de 2024 concluía: «Municípios com maior peso de imigrantes têm menos criminalidade e em municípios com maior número absoluto de estrangeiros a criminalidade desceu; por outro lado, o rácio de crimes por total de residentes é mais baixo em municípios onde a população estrangeira tem mais impacto.» (Publico, 28/9/2024). Convenhamos, portanto: a migração descontrolada é um problema, mas as mentiras sobre ela são um problema maior. Em Portugal, neste momento, quase dois terços da população associa a imigração à criminalidade.
A retórica é semelhante à da ideologia nazi. Semear o medo e colher-lhe os frutos. Quando, em 27 de fevereiro de 1933 o edifício do parlamento alemão (Reischtag) ardeu, encontrou-se um culpado, um comunista neerlandês. Na propaganda de Goebbels, a própria existência da Alemanha estava em perigo por causa dos comunistas e dos judeus. Contra esse perigo, os alemães preferiram entregar a sua liberdade a quem os havia de salvar: Hitler. Liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, direito à privacidade, tudo isso foi retirado ao povo alemão para que a pátria fosse salva e mais de 200 mil pessoas foram presas indiscriminadamente em nome da segurança. Quando, a 9 de novembro de 1938, um judeu assassinou um diplomata alemão nos Países Baixos, a propaganda alemã foi de tal modo eficiente que o ódio aos judeus se transformou em medo, e o medo, sempre pior que o ódio, criou a “Noite de Cristal”, onde milhares de negócios foram destruídos, sinagogas incendiadas, pessoas assassinadas por vizinhos: o judeu transformou-se num monstro. A Alemanha era a vítima, morreria às mãos dos comunistas e dos judeus. Foi Hitler que a salvou.
Dizem que Portugal, hoje, está em perigo, por causa dos imigrantes e desta esquerdalha de que os jornalistas também fazem parte. Quem nos salva?
Há muitos cristãos que pensam assim. Sou tentado a compreender, até porque o medo, que nos está a ser sub-repticiamente incutido, é demasiado poderoso. E o que o meu medo me faz acreditar é muito mais importante do que a verdade. E isto contamina um povo inteiro. Pensar que vamos ser engolidos pelos muçulmanos e que essa ameaça é real e iminente é, realmente, poderoso.
A esses cristãos, aconselho a que leiam o capítulo 25 de São Mateus, quando Jesus convida os felizes a entrarem para a bem-aventurança eterna. Porquê? Uma das respostas, ou seja, uma das razões que Jesus exige pera a nossa salvação está no versículo 35: “era estrangeiro e acolhestes-me”.