“Eu dormia com o Senhor da Pedra, debaixo do seu andor”- padre Norberto Brum

O sacerdote vilfranquense, que completa 25 anos de ordenação, preside este ano à principal festa religiosa de verão de São Miguel, a festa do Senhor da Pedra

Foto: Padre Norberto Brum preside pela primeira vez à festa do Senhor da Pedra

No próximo dia 31 de agosto, Vila Franca do Campo viverá um momento especial nas tradicionais festividades em honra do Senhor Bom Jesus da Pedra, uma festa reconhecida pelo Papa Leão XIII em 1903 e promovida pela Santa Casa da Misericórdia, uma das mais antigas da diocese de Angra, fundada entre 1551 e 1552.

Pela primeira vez, o padre Norberto Brum, natural desta vila micaelense, a primeira capital da ilha de São Miguel, será o pregador do tríduo e da missa solene da festa que, há décadas, marca profundamente a sua vida espiritual e pessoal.

“Para mim, é um voltar à origem”, afirma o sacerdote, que desde criança viveu intensamente esta devoção. Filho de uma família profundamente ligada à paróquia da matriz de São Miguel Arcanjo e também à Igreja da Misericórdia— o pai foi sacristão, a mãe envolvida nas atividades e a madrinha, Maria do Carmo Bulhões, zeladora da imagem —, o padre Norberto Brum cresceu entre a Matriz, a Igreja da Misericórdia e o ambiente fervoroso da festa.

Recorda, com detalhe, a infância passada a acompanhar a madrinha nos cuidados diários com a imagem, quando ainda se utilizava azeite na lamparina.

“A primeira coisa que fazíamos ao entrar na igreja era dizer ‘olá ao patrão’”, conta, lembrando como a proximidade física e espiritual com o Senhor da Pedra moldou a sua fé. Ainda jovem, assumiu tarefas de decoração da igreja e da imagem, introduzindo jóias que antes estavam guardadas, e chegou a ser apelidado, em tom carinhoso, de “alfaiate do Senhor da Pedra”.

Para o sacerdote que este ano assinala 25 anos de ordenação e, portanto, vive um duplo jubileu, a ligação sempre foi “tu a tu” com a imagem.

“Eu dormia com o Senhor da Pedra, literalmente”, diz, recordando as noites passadas na igreja a guardar o andor e os seus adornos, uma responsabilidade que levava muito a sério.

“As pessoas passavam a noite inteira lá na Matriz e os meus tios -um dos meus tios é que trabalhava lá- ajudavam a preparar tudo, sobretudo a tomar conta, como se dizia. Sempre aquela preocupação e a festa, para mim, era passada praticamente sempre na igreja porque acabava a procissão e já estávamos a guardar tudo”.

“Eu recordo até quando a imagem estava no andor para ser preparada e que estava sem capa, eu punha-me ao lado e dava assim um abraço e dizia:` amanhã vais ver as raparigas bonitas da vila´. E as pessoas mais velhas diziam: `eh rapaz, não se diz isso. Estás a ofender o Senhor´. Não era ofensa nenhuma, era apenas uma vontade muito grande de abraçar aquele Senhor e de o por ainda mais bonito para que todos o venerassem”, acrescenta.

Também ajudou nas iluminações e em várias frentes da festa, tendo até recebido, em tempos de estudante, a sua primeira remuneração por este trabalho.

“500 escudos… Foi uma festa. Posso dizer que foi o meu primeiro ordenado. Tinha trabalhado imenso e pagaram-me”, refere com alguma graça.

Apesar da mudança da Vila e das pessoas ao longo dos últimos 25 anos, o sacerdote sente-se sempre acolhido quando regressa: “As pessoas cumprimentam-me, fazem-me festa. É tão bom regressar à origem”, sublinha.

Foto: IA/Arquivo

“Um culto de amor e paciência”

A imagem do Senhor da Pedra — Cristo sentado numa pedra, coroado de espinhos, com as mãos atadas—, a recordar um dos passos da Paixão, sempre lhe falou de um amor desmedido.

“É um Cristo pacífico, amoroso, com um olhar muito meigo. Um Deus que não precisa de jóias ou capas, mas que precisa do nosso amor e capacidade de entrega”, explica.

Para o padre Norberto Brum, o culto tem semelhanças com outras grandes devoções açorianas, como o Senhor Santo Cristo dos Milagres, atraindo fiéis que recorrem nas aflições e fazem promessas. Sem negar o valor desse gesto, o sacerdote sublinha que Jesus “não é um serviço de urgência, é amor”. Mas, o que mais o desafia é o potencial que este culto tem para a evangelização e que deveria ser mais valorizado, “quem sabe até na criação de um santuário”, refere dada a presença permanente de fiéis.

“Às vezes a Igreja tem tesouros na mão e não os desenvolve. O Senhor da Pedra é uma pedra preciosa”, afirma, defendendo que as celebrações devem integrar-se no calendário e nas práticas tradicionais do povo, sem tentar impor modelos artificiais.

Mensagem de esperança

O ano de 2025, marcado pelo Jubileu da Esperança e pelo jubileu sacerdotal do padre  Norberto Brum, torna o convite do seu colega de curso, padre José Borges, para a pregação ainda mais simbólico.

O sacerdote revela que tem rezado muito para perceber o que Deus quer que diga aos fiéis. A sua intenção é partir da imagem do Senhor da Pedra para transmitir uma mensagem simples e próxima: “Ele não ficou eternamente sentado na pedra. Levantou-se, venceu a pedra do sepulcro. O Senhor da Pedra é o Senhor da Ressurreição, o Deus connosco”, afirma.

Recorrendo ao olhar terno da imagem como fonte de inspiração, o padre Norberto Brum quer desafiar cada pessoa a “limpar as suas próprias pedras” e a descobrir, na paciência e no amor de Cristo, a esperança para os dias de hoje.

“Nós somos a glória e a beleza de Deus. Ele que nos guarda e protege espera por nós, sempre, de mãos atadas para não fugir do nosso lado”, diz.

E, tal como ele, “a gente também tem que limpar as nossas pedras. Temos de nos levantar, fazermo-nos ao caminho, que por vezes é uma cruz , mas este é também o Senhor da ressurreição, o vivente, o Deus connosco. É isso, o Senhor da Pedra é o Senhor Deus connosco, é o que está no mundo,  coroado de espinhos porque a glória somos nós, a sua glória somos nós. O seu resplendor somos nós. Nós é que somos a beleza de Deus”, conclui.

Com este regresso, o padre Norberto Brum não leva apenas memórias de infância. Leva uma vida inteira de fé enraizada na sua terra e no seu povo e, a 31 de agosto, quer devolver-lhes em palavra e celebração o amor que dali recebeu.

“Para mim, sobretudo, é um voltar à origem. E quando eu digo voltar à origem é porque desde pequenino, como vilafranquense, sempre participei nesta festa”, afirma.

O padre Norberto Brum pregará o tríduo nos dias 27,28 e 29 de agosto, na Igreja da Misericórdia.

Os dias principais da festa, 30 e 31 de agosto, contarão com a habitual homenagem ao Senhor Bom Jesus da pedra (30 de agosto às 12h00); Procissão da Mudança da imagem (30 de agosto, 21h00); Missa da Festa (dia 31, 09h30) e Procissão (31 de agosto, 18h00).

Trata-se de uma festa que extravasa o âmbito concelhio e chama a Vila Franca inúmeros cristãos, inclusive da diáspora. Segundo a tradição, a imagem do Senhor Bom Jesus da Pedra foi encontrada há vários séculos na Praia do Corpo Santo, em Vila Franca do Campo, dentro de uma caixa de madeira. A inscrição que trazia dizia: “Para a Misericórdia de Vila Franca”. A população interpretou o achado como um sinal divino. A imagem foi então levada para a Igreja da Misericórdia, também conhecida hoje como Igreja do Senhor Bom Jesus da Pedra.

A festa em honra do Senhor Bom Jesus da Pedra realiza-se todos os anos no último domingo de agosto e é organizada pela Irmandade da Misericórdia e pela comunidade local. O ponto alto é a missa solene e a procissão pelas ruas da vila, onde a imagem é transportada num andor ricamente ornamentado.

A devoção tem um carácter muito penitencial e de súplica, semelhante ao culto do Senhor Santo Cristo dos Milagres, em Ponta Delgada. Muitos fiéis recorrem ao Senhor da Pedra em momentos de aflição, pagando promessas ou levando ofertas.

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