
O Papa assumiu a intenção de prosseguir o caminho deixado por Francisco, no combate aos abusos sexuais, com atenção às vítimas, sem transformar o tema no “foco central” da vida eclesial.
“O Papa Francisco teve uma visão muito boa sobre este tema. Reconheceu a importância do problema mas, ao mesmo tempo, que a questão do abuso sexual não pode tornar-se o foco central da Igreja. A Igreja tem uma missão”, disse em entrevista ao ‘Crux’, portal de informação religiosa dos EUA.
A entrevista à jornalista norte-americana Elise Ann Allen faz parte de uma biografia publicada hoje pela editora ‘Penguin’ no Peru, país onde Leão XIV foi missionário, enquanto religioso agostiniano, e depois bispo, por nomeação de Francisco.
“Conheço pessoas que abandonaram a Igreja devido à dor que sofreram, e a sua escolha deve ser respeitada. Ao mesmo tempo, a Igreja também tem a missão de pregar o Evangelho e, graças a Deus, a grande maioria das pessoas que estão comprometidas com a Igreja — padres, bispos, religiosos — nunca abusaram de ninguém. Portanto, não podemos fazer com que toda a Igreja se concentre exclusivamente neste tema, porque essa não seria uma resposta autêntica ao que o mundo precisa em termos da missão da Igreja”, precisa o pontífice.
Na primeira grande entrevista desde a sua eleição, a 8 de maio, Leão XIV sublinha que esta é uma crise que vai exigir tempo.
“Certamente, existem alguns problemas graves no que diz respeito à proteção de menores e à forma de responder à crise. Considero que esta é uma crise real”, afirma.
“As vítimas devem ser tratadas com grande respeito e com a compreensão de que aqueles que sofreram feridas muito profundas por causa dos abusos às vezes carregam essas feridas por toda a vida. Seria ingénuo da minha parte, ou da parte de qualquer pessoa, pensar que [basta] dar-lhes algum tipo de compensação financeira, ou tratar do processo e despedir o padre, como se essas feridas fossem simplesmente desaparecer por isso”.
O Papa defende uma “sensibilidade e uma compaixão autênticas e profundas pelo dor e sofrimento que as pessoas sofreram às mãos dos ministros da Igreja”.
“Esse é um problema que nos acompanha e acredito que deve ser tratado com profundo respeito. Ao mesmo tempo, um dos fatores que complicam isto, e sobre o qual as pessoas começam a manifestar-se cada vez mais, tem a ver com o facto de que os acusados também têm direitos, e muitos deles acreditam que estes não foram respeitados”, acrescentou.
“As estatísticas mostram que mais de 90% das pessoas que se apresentam e fazem acusações são vítimas genuínas. Elas dizem a verdade, não estão a inventar. Mas também houve casos comprovados de algum tipo de acusação falsa, padres cujas vidas foram destruídas por isso.”
Leão XIV sublinha que, tanto do ponto de vista civil como canónico, “a lei existe para proteger os direitos de todas as pessoas”.
“Ter, na medida do possível, um sistema de justiça fiável que respeite os direitos de todos leva tempo”, assume.
Admitindo que vários processos demoram “anos e anos”, o Papa recorda que “o facto de a vítima se apresentar e fazer uma acusação e de a acusação ser presumivelmente precisa não elimina a presunção de inocência”.
“Os padres também têm de ser protegidos, ou a pessoa acusada tem de ser protegida, os seus direitos têm de ser respeitados. Mas, por vezes, só o facto de dizer isso causa ainda mais dor às vítimas”, aponta.
“Estamos numa espécie de impasse. A Igreja, certamente, tentou criar uma nova legislação que, por um lado, acelerasse o processo e respeitasse especialmente os problemas de que falei antes — as vítimas e a sua dor e o seu direito de que essa dor seja reconhecida em algum tipo de resposta da Igreja —, mas, ao mesmo tempo, respeitasse o acusado.”
Leão XIV admite que, perante as vítimas que tomaram a palavra para falar sobre os abusos que sofreram, “a Igreja nem sempre encontrou a melhor maneira de lidar com isso, de processar isso com elas”.
“Muitos de nós somos, talvez, ainda novatos a aprender qual é a melhor maneira de acompanhar essas pessoas na sua dor. Penso que essa é uma das áreas em que continuamos a precisar da ajuda de profissionais para nos assistir e acompanhar as vítimas”, assume.
O Papa elogia a visão de Francisco, sobre este tema, reforçando a necessidade de acompanhar quem “viu a sua vida profundamente ferida, ou mesmo destruída, pelo abuso sexual”.
“É aí que precisamos de respeitá-los e acompanhá-los. Há muitas outras pessoas na Igreja que têm o direito de ser acompanhadas, no que quer que estejam a viver e a experimentar, e a Igreja também tem de estar com elas. É mais um dos muitos desafios que estou a tentar enfrentar”, conclui.
A conversa – gravada em Castel Gandolfo e na residência do Papa no Palácio do Santo Ofício, do Vaticano – integra o livro biográfico ‘Leão XIV: cidadão do mundo, missionário do século XXI’.
Papa descarta mudanças na doutrina sobre pessoas LGBTQ e casamento
“Como vimos no Sínodo [2021-2024], qualquer tema relacionado com as questões LGBTQ é altamente polarizador dentro da Igreja. Por enquanto, devido ao que já tentei demonstrar e viver em termos da minha compreensão de ser Papa, neste momento da história, estou a tentar não continuar a promover a polarização na Igreja”, disse em declarações ao ‘Crux’, portal de informação religiosa dos EUA.
“Parece-me muito improvável, certamente num futuro próximo, que a doutrina da Igreja mude em termos do que ensina sobre sexualidade e casamento”, acrescenta.
“Todos são bem-vindos e vamos conhecer-nos e respeitar-nos. As pessoas querem que a doutrina da Igreja mude, querem que as atitudes mudem. Acho que temos de mudar as atitudes, antes mesmo de pensar em mudar o que a Igreja diz sobre qualquer questão específica”, indica o Papa.
Eleito a 8 de maio como sucessor de Francisco, Leão XIV assume que o “tema LGBTQ” tem sido uma das questões que lhe foram colocadas.
“Não tenho um plano, neste momento”, refere.
“Para algumas pessoas, a identidade de uma pessoa implica apenas a identidade sexual e, para muitas pessoas, noutras partes do mundo, esse não é um tema principal, relativamente à forma como devemos tratar-nos uns aos outros”, acrescentar.
“O que estou a tentar dizer é o que Francisco disse muito claramente quando afirmou: ‘Todos, todos, todos’. Todos estão convidados a entrar, mas não convido uma pessoa por ser ou não ser de uma identidade específica. Convido uma pessoa porque é um filho ou uma filha de Deus.”
Leão XIV reforça a sua defesa da família construída por “um homem e uma mulher num compromisso solene, abençoados no sacramento do matrimónio”.
“Mesmo dizendo isso, compreendo que algumas pessoas vão ficar ofendidas. No norte da Europa, já estão a publicar rituais para abençoar ‘as pessoas que se amam’ é assim que eles se expressam, o que vai especificamente contra o documento que o Papa Francisco aprovou, ‘Fiducia Supplicans’, que basicamente diz: claro que podemos abençoar todas as pessoas, mas não procurar uma forma de ritualizar algum tipo de bênção, porque isso não é o que a Igreja ensina”, sustenta.
O Papa convida a “aceitar as pessoas que tomam decisões na sua vida e respeitá-las”, assumindo que o tema é “muito controverso”.
“Algumas pessoas farão exigências para dizer ‘queremos o reconhecimento do casamento gay’, por exemplo, ou ‘queremos o reconhecimento das pessoas que são trans’, para dizer ‘isto é oficialmente reconhecido e aprovado pela Igreja’. Os indivíduos serão aceites e recebidos”, apontou.
“Qualquer padre já ouviu confissões de todos os tipos de pessoas, com todos os tipos de problemas, todos os tipos de estados de vida e escolhas que foram feitas. O ensinamento da Igreja continuará como está, e isso é o que tenho a dizer sobre o assunto por agora. Acho que é muito importante.”
Questionado sobre o “papel da mulher na Igreja”, o Papa diz que é preciso de tomar decisões de “forma sinodal”.
O documento final da XVI Assembleia Geral do Sínodo (2021-2024) dedicou um número específico ao ministério das mulheres, sustentando que “não há nenhuma razão para que as mulheres não assumam papéis de liderança na Igreja”.
“Espero seguir os passos de Francisco, incluindo a nomeação de mulheres para alguns cargos de liderança, em diferentes níveis, na vida da Igreja, reconhecendo os seus dons e a sua contribuição de muitas maneiras”, afirmou Leão XIV.
Quanto ao acesso das mulheres ao ministério diaconal, o Papa recorda que a questão vem sendo estudada há “muitos anos”, perspetivando que “continuará a ser um problema”.
“Eu, por enquanto, não tenho intenção de mudar o ensinamento da Igreja sobre o assunto. Acho que há algumas perguntas prévias que devem ser feitas”, sustenta.
O Papa faz eco de preocupações manifestadas sobre “o “clericalismo nas estruturas atuais da Igreja” e o impacto desse problema: “Gostaríamos simplesmente de convidar as mulheres a clericalizar-se? O que é que isso realmente resolveu?”.“Estou disposto a continuar a ouvir as pessoas. Existem esses grupos de estudo, como o Dicastério para a Doutrina da Fé, que continuam a examinar o contexto teológico, a história, de algumas dessas questões, e vamos acompanhar isso, ver o que resulta”, assume.
Leão XIV pede ainda mais apoio para a “família tradicional”, reforçando o seu papel na sociedade.
“Pergunto-me em voz alta se a questão da polarização e da forma como as pessoas se tratam umas às outras não vem também de situações em que as pessoas não cresceram no contexto de uma família onde aprenderam a amar-se umas às outras, a viver umas com as outras, a tolerar-se umas às outras e a formar laços de comunhão. Isso é a família”, declara.
A entrevista – gravada em Castel Gandolfo e na residência do Papa no Palácio do Santo Ofício, do Vaticano – integra o livro biográfico ‘Leão XIV: cidadão do mundo, missionário do século XXI’.