Manéis há muitos, poucos Manéis há

Pelo padre José Júlio Rocha

Mané esteve na cadeia. Ainda hoje não sabe se a cadeia foi o lugar da sua liberdade ou se a saída da cadeia foi a sua verdadeira prisão. Andou no tráfico de droga, ganhou alguma grana e, quando menos esperava, deu com os quatro costados nas grades da choldra.

Eu conhecia-o. Antes e depois da experiência da cadeia. Não era flor que se cheirasse, mas a essência das flores não se esgota no perfume. Antes da cadeia era magro, maléfico, mafioso, hábil em lugares esconsos e em assaltos bem magicados. A penúltima vez que vi o Manel, estava ele de “precária”, passando uns dias em casa, antes de regressar às grades da prisão. Tinha um corpo de atleta olímpico. Na cadeia, praticava desporto no ginásio, tonificava o corpo, cuidava de si, procurava, dentro das duvidosas possibilidades, uma alimentação saudável, deitava-se cedo, cedo se levantava, era um prisioneiro exemplar. Na missa que o capelão ia celebrar à cadeia ele era o acólito, chegou a ler, atabalhoadamente, duas ou três vezes a leitura na missa. Lia, tinha tempo e disponibilidade para aprender, cresceu.

Foi então que veio o fim da pena e a definitiva liberdade. A última vez que o vi, já ele estava livre havia mais de um ano. Destruído. Os músculos de um corpo atlético definhavam sob o peso da inércia. Tossia de fumar cigarros baratos e tragar haxixe. Passava as manhãs no café manhoso lá da terra, as tardes no mesmo lugar. Tivera dois empregos e rebentou com eles, não tinha dinheiro e a vida corria da frente para trás, com o subsídio do Rendimento Social de Inserção. Bebia. Perdia-se lentamente, sem referências nem sonhos, no paradoxo da sua própria liberdade.

A liberdade não existe. É um conceito abstrato e, como tal, não é uma realidade palpável. É como um adjetivo da pessoa: a liberdade não existe por si só, existem, isso sim, pessoas livres. E, no entanto, o que é uma pessoa livre? E o que é verdadeiramente importante: o ser livre por dentro ou a liberdade de nos deixaram fazer ou não o que quisermos? O pessoano Álvaro de Campos poetizava que “Que importa? Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.” Poderíamos inventar o ditado: se estás preso por dentro, todo o mundo é a tua prisão. Se por dentro estás livre, até uma cela de dois metros quadrados é o teu lugar de liberdade. Mas será mesmo assim? Então porque e para que é que existiram tantos e tão cruéis combates pela liberdade? Porque se combateram tantas ditaduras, tiranias, leis iníquas, porque se derramou tanto sangue pela democracia, os direitos, liberdades e garantias, porque é que tantos morreram para que nós fôssemos donos do nosso destino, fizéssemos de nós o que quiséssemos, para chegar a esse ponto onde a liberdade nos parece a nossa própria prisão?

Sören Kierkegaard, o angustiado existencialista dinamarquês do século XIX, queixava-se de que a liberdade, como ausência de determinismo, era a nossa grande fonte de angústia. Vejamos só uma coisa: quando, nos Açores, só tínhamos um canal de TV, a RTP Açores, víamos, placidamente, os programas de bandeira a bandeira. Não tínhamos escolha, tínhamos a paz de ver o que nos davam a ver. Agora, com mais de 500 canais nas nossas “boxes”, deambulamos pelo “zapping”, à procura do melhor canal sem o encontrar, queixando-nos de que a televisão não dá nada que preste. Quando não tens escolha, quando não tens hipótese, há uma certa “paz” em não escolheres, em fazeres o que te foi determinado. Quando tens muitos caminhos a escolher, quando o futuro tem muitas saídas e entradas, a angústia da escolha dramatiza os teus dias. Uma ditadura é imensamente mais eficaz do que uma democracia. Que o digam os saudosistas de Salazar.

Aqui há uns anos, quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão dos talibã, vi uma reportagem de lá onde aparecia um homem cinzento sob um céu cinzento, numa terra cinzenta, vestido de cinzento e com uma voz cinzenta. Ao seu lado, jazia, de pé, uma mulher amortalhada numa burka cinzenta. O homem cinzento afirmava, com uma veemência cinzenta: “O Ocidente pensa que protege as suas mulheres. Mentira! Deixa-as perder. As mulheres no Ocidente estão abandonadas, deixadas à sua sorte, ninguém as protege. Nós é que sabemos proteger as nossas mulheres, cuidamos delas, não as deixamos ser vítimas dos olhares ou da maldade dos outros homens. As mulheres têm que ser protegidas.” Vai na mesma linha a posição do execrável patriarca das Rússias, Kirill II, apoiante incondicional da agressão de Putin à Ucrânia, pela simples razão de que o Ocidente é corrupto, Kiev corria o risco de fazer uma parada de “orgulho gay”, uma hecatombe. Por isso, mais vale a pena esmagar a Ucrânia e as suas mulheres e as suas crianças a deixá-los, como parte da grande Rússia, corromper-se nos contravalores da liberdade ocidental.

Afinal, o que é ser livre? O Mané era mais livre dentro ou fora das grades? O talibã cinzento teria razões para dizer que as suas mulheres eram mais felizes do que as mulheres do Ocidente? O execrável oligarca Kirill II teria razão ao afirmar que a liberdade corrompeu o Ocidente?

A liberdade não é um fim em si mesma, mesmo que José Cid cante que nasceu para ser livre “sem razão e sem porquê”. A liberdade é um princípio. Quando caiu o Muro de Berlim, milhares de berlinenses do leste invadiram a Berlim ocidental, o seu comércio, as suas liberdades incomensuráveis, os seus filmes pornográficos, as suas prostitutas, os seus pequenos crimes, os seus defeitos.

A liberdade só acontece quando amadurecemos. Quando sabemos fazer as escolhas com responsabilidade. Mil vezes a liberdade. E, no entanto, o paradoxo da liberdade é uma real ameaça: eu posso usar a minha liberdade ao ponto de a destruir. E depois? Manéis há muitos…

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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