Miranda

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/CR

Se o gerúndio latino de “agenda” se refere ao que deve ser feito, o de “miranda” diz do que deve ser visto, mirado ou admirado. E não, este não é um nome de família. É o nome de uma jovem, que conheci num dos lugares mais deslumbrantes destes Açores, a Fajã da Caldeira, em São Jorge. Miranda tinha uns olhos que não sei, ainda não me decidi, se chamá-los verdes ou azuis. Eram, assim, como o mar da Costa Smeralda, Sardenha, onde o oceano nos confunde os olhos, encantando-os como as sereias na rota de Ulisses.

Miranda, uma menina que terá 16 anos, veio à Aldeia da Esperança e trouxe, como que por acaso, os seus olhos consigo. E deu-os para serem vistos. Curioso trocadilho, este dos olhos, que servem para ver mas também para serem mirados, tal como servem para sorrir ou chorar, para falar ou estar calado, porque os olhos não mentem, apenas dizem, como janelas abertas, o que nos vai na alma. Os olhos de Miranda olhavam a vida com espanto, com aquela inocência bem característica de quem procura no mundo, pela primeira vez, um sentido para todas as coisas.

Estive presente, durante cinco dias, naquela fajã espalhada por debaixo da falésia verde e íngreme, pássaros a cantar, o mar a bater docemente nas pedras escuras. A noite, onde as estrelas têm o dobro do tamanho e o triplo do brilho, a oferecer-nos o seu silêncio cortado pelo gemido dos cagarros, umas casinhas pacientes, tudo o que é preciso para não precisar de mais nada. A Aldeia da Esperança foi uma iniciativa da Diocese de Angra, na trilha da Jornada Mundial da Juventude, assim, mais ou menos, em ponto pequeno. Durante três dias – acrescente-se a chegada e a partida e fazem cinco – cerca de trezentos jovens e muitos voluntários encontraram-se naquele lugar por onde Adão e Eva devem ter passeado antes de fazerem asneira. Nesse cenário idílico, os jovens tiveram a experiência do puro contato com a natureza, criação de Deus, beleza das Suas mãos. Partilharam experiências e vidas, fizeram “work-shops” de oração, meditação, vocação, etc., conheceram-se melhor, a si e aos outros, cantaram, celebraram, confraternizaram, limparam o terreno, deixando-o mais limpo do que antes. Nunca houve, que se saiba, uma discussão acesa, uma briga, apenas alguns tornozelos inchados, uma dor aqui ou ali, porque o trilho que desce da serra para a fajã, um dos mais belos e difíceis da Região, foi feito por todos eles.

Rezou-se.

E eu dei por mim a pensar que talvez tenha envelhecido depressa demais, que era preciso retroceder na idade, porque nos tornamos velhos só quando os jovens nos começam a incomodar. Nós, os cotas, irritamo-nos por demais com a jactância dos nossos adolescentes. Já dizia Sócrates, o grego: “Os jovens de hoje gostam do luxo. São malcomportados, desprezam a autoridade. Não têm respeito pelos mais velhos e passam o tempo a falar em vez de trabalhar.” Ainda hoje é assim graças a Deus, não propriamente o desrespeito dos jovens para com os adultos, mas a nossa desconfiança perante quase tudo o que vem dos jovens, por uma simples razão: são eles que vão tomar o nosso lugar, são eles que vão mandar no amanhã, vão decidir, vão estar no topo e nós não gostamos de ser substituídos.

A Aldeia da Esperança foi uma lavagem humana e espiritual para mim. Regressei aos anos 90 quando, com um violão às costas e sem o saber tocar, me entreguei à pastoral juvenil e encontrei nos jovens aquilo que não encontro em mais lado nenhum e só agora reencontrei: uma generosidade sem limites, o verdadeiro sentido da amizade, uma inocência primordial ao olhar o mundo e as pessoas, uma profunda e feliz libertação de preconceitos que atascam, dividem e dão cabo dos adultos: ali não havia clubes, partidos, etnias, ilhas, nada! Eram irmãos a abraçar irmãos e digam-me sem rodeios: não é esta a verdadeira vida? Não seremos nós, os adultos, que induzimos, com os nossos “princípios e valores”, o pior veneno nos jovens e os destruímos com uma coisa chamada idade adulta?

Por isso não me calo, quando falo aos jovens: sejam rebeldes! Rejeitem esta sociedade egoisticamente capitalista, que vos quer calar à força, garroteando o vosso futuro com bugigangas como telemóveis, redes sociais, videojogos e drogas similares. Gritem forte que são vocês que querem construir o vosso futuro porque este porco mundo o está a destruir. Ensinem-nos outra vez a fraternidade, a amizade e uma coisa chamada diálogo que vocês bem sabem fazer e nós já não, porque renunciámos à nossa juventude e queremos também que vocês renunciem. Berrem: NÃO!

Miranda levou a beleza dos seus olhos consigo, mas deixou-me a sua cor, um esmeralda que julgo único, quando me perguntou, mais com os olhos do que com a boca: “o senhor gosta de ser padre?” E eu: “adoro!”

Parabéns, São Jorge, pelo extraordinário trabalho de logística num terreno inacessível. Parabéns, equipa do Jubileu, pela ideia, as ideias, o trabalho árduo e a constante preocupação. Parabéns, Pastoral Juvenil, por toda a ideação da Jornada: tudo deu certo. Tudo, com os jovens, dá certo. Parabéns, Dom Armando, pela sua presença, as suas palavras, aquela bênção final, no meio da lagoa, com Jesus a sorrir. Parabéns Igreja nos Açores.

Obrigado, Miranda.

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