Monsenhor José Constância defende “recomeço urgente” do espírito do Concílio Vaticano II nos 60 anos do seu encerramento

Um sacerdote e uma leiga refletem sobre o Concílio pedindo novo entusiasmo da Igreja. A palavra chave é comunhão eclesial

Foto: Igreja Açores

 

No ano em que se assinalam os 60 anos do fim do Concílio Vaticano II, Monsenhor José Constância alerta para os desafios centrais que hoje se colocam à Igreja, defendendo “um recomeço urgente” inspirado pelo Evangelho, pela sinodalidade e pela abertura ao mundo contemporâneo.

“O que falta fazer? Falta sempre recomeçar”, afirmou, sublinhando que o atual percurso sinodal promovido pelo Papa Francisco representa “uma oportunidade para retomar o espírito, a vivência e o estilo do Concílio”. Para o sacerdote, o primeiro passo é claro: “Temos de novo de nos voltar para Cristo”, insistindo na necessidade de uma Igreja verdadeiramente cristocêntrica, encarnada nos desafios sociais, tecnológicos e culturais do século XXI, num mundo que mudou profundamente e a própria Igreja parece confrontar-se com “cansaço, polarizações e resistências internas”.

É este reencontro com o Evangelho, afirma, que deve orientar a Igreja num contexto muito diferente daquele vivido em 1965. A Igreja, explica, tem hoje a tarefa complexa de traduzir a mensagem cristã para um cenário de profundas mudanças culturais e sociais.

“Começamos a não entender bem o mundo”, salienta.

Ao mesmo tempo, Monsenhor José Constância recorda o impacto transformador do Vaticano II, que descreve como “um acontecimento fantástico para a Igreja, uma verdadeira primavera”. Defende que o Concílio mexeu em toda a vida da Igreja, gerando tensões entre setores mais ligados à tradição e outros que procuravam abrir caminhos à luz do Evangelho. Esse movimento, diz, não terminou.

“60 anos depois, as tensões continuam: teológicas, litúrgicas, pastorais e no modo como a Igreja está presente no mundo”, refere.

O sacerdote traça um retrato das últimas seis décadas marcado por avanços e recuos: uma primavera inicial, seguida de um período que classificou como “restauracionista”, antes de uma nova vaga de renovação, já mais próxima da atualidade. Apesar disso, lamenta que em muitos contextos “o Concílio tenha ficado na gaveta”, reduzido a uma visão meramente tradicional e distante do seu impulso original.

“Voltámos muito mais para Cristo, para o Evangelho”, reconhece, mas admite que a aplicação concreta das reformas conciliares “ficou incompleta”.

Na sua leitura, parte das dificuldades nasce do desgaste generalizado que também afeta a sociedade.

“Há um certo esgotamento, uma depressão que vemos no mundo e na Igreja.”

Para superá-lo, diz, é necessário que todos – clero, religiosos e leigos –  reencontrem uma espiritualidade enraizada na vida concreta.

“Se não nos encontrarmos em Cristo e numa vida evangélica encarnada no mundo de hoje, vai ser difícil superar polarizações”, afirma.

O sacerdote, que é o diretor do Instituto católico de Cultura e membro da Equipa Sinodal Diocesana, insiste ainda na importância de construir comunidades verdadeiramente participativas.

“Uma Igreja onde todos têm um lugar”, defende, não pode estar desligada dos problemas reais das pessoas: o desemprego, as dificuldades materiais, as guerras e as tensões que moldam o dia-a-dia.

“Não podemos construir comunidades cristãs fora da vida real das pessoas: desemprego, dificuldades materiais, guerras. A Igreja tem de ser presença transformadora no mundo”, afirma.

A sinodalidade, acrescenta, não é um conceito abstrato, mas um modo concreto de viver a comunhão.

“Temos de trabalhar em conjunto. Falta-nos isto, falta-nos bastante isto”, reconhece.

Num momento em que o Papa e a Comissão Teológica Internacional apelam ao regresso às grandes constituições conciliares, como Gaudium et Spes e Lumen Gentium, Monsenhor José Constância é claro: “Cumprimos e não cumprimos o que emanou desses documentos.” E, alerta para que a Igreja se entenda como comunidade enviada ao mundo para o transformar à luz do Evangelho.

 “Se nos fecharmos ou protelarmos problemas internos, ficaremos congelados”, sublinha.

Apesar do diagnóstico exigente, o sacerdote mantém esperança.

“É uma hora de grande desesperança no mundo e de confusão na Igreja, mas também é uma hora do Espírito Santo” destaca apelando a que a Igreja saiba escutar esse impulso, e reencontre o caminho que o Concílio abriu há seis décadas.

“Temos uma riqueza enorme no Evangelho, um código revolucionário de bem-aventuranças. Se o deixarmos transformar-nos, pode nascer de novo uma primavera conciliar.”

Foto: Igreja Açores/CR

 

Isabel Parreira recorda impacto do Concílio e alerta para afastamento atual dos fiéis

O Concílio Vaticano II representou “um abrir de olhos para os leigos”, afirma por sua vez Isabel Parreira, que recorda de forma vivida a “transformação espiritual e comunitária” experimentada pela Igreja açoriana entre as décadas de 1960 e 1970, que  trouxeram “uma nova forma de participação” e uma aproximação inédita entre leigos e a vida paroquial.

Segundo conta, a mudança foi sentida de imediato no quotidiano familiar: “Tirei muito proveito disso. E embora tivesse filhos pequenos, eles andavam sempre atrás de nós.”

A transição contrastou fortemente com o ambiente religioso da sua infância e juventude, marcado, diz, pelo medo e pela rigidez.

“A gente ia à missa obrigados pelos pais… na catequese era tudo com muito medo. Deus castiga… até quase não podíamos olhar para o espelho que o demónio ia aparecer atrás. Lembro-me que na Semana Santa era tudo negro e fechado” diz brincando com a questão.

Isabel Parreira lembra também que, apesar da catequese, “não havia uma atividade dentro da Igreja”, e que apenas após o seu primeiro cursilho sentiu um verdadeiro chamamento. Casou-se em 1965, no ano em que encerrou o Concílio e alguns anos depois, já com um filho, participou no primeiro cursilho, que resultou num aprofundamento espiritual: “Foi uma mudança.”

A década de 1970 é recordada por Isabel Parreira, mão de cinco filhos e toda a vida adulta dedicada à animação de grupos de jovens, como um período “muito rico” na vida da Igreja local. No Liceu, no Convento de São Francisco, celebrava-se a missa das primeiras sextas-feiras, reunindo jovens rapazes e raparigas, com o padre José de Lima. O padre Abel Nóia, posteriormente,  foi um dos impulsionadores das primeiras reuniões de casais, movimento que rapidamente ganhou força.

“Não eram as equipas de Nossa Senhora como hoje as conhecemos mas fazíamos reuniões mensais, discutíamos os problemas, liamos a Palavra de Deus e refletia-mo-la” referiu.

“Havia uma euforia… juntávamo-nos, fazíamos reuniões aqui em casa”, relata. Entre os participantes esteve Cunha do Oliveira, que mais tarde haveria de ser dispensado do sacerdócio, e os encontros tornaram-se espaços de reflexão: “Falávamos de montes de coisas… havia uma necessidade de clarificar as coisas. A comunhão eclesial foi crescendo.”

Os Cursilhos de Cristandade foram, segundo Isabel Parreira, decisivos para essa renovação. Inicialmente vistos com desconfiança — “era a ideia de que aquela gente ia para lá armados em santos” — acabaram por afirmar-se como dinamizadores paroquiais. “Ajudaram muito… havia procura, tínhamos listas de espera. Nos cursos fazia-se o recrutamento para a paróquia. Quem fazia o curso tinha que vir para o mundo.”

“Faz-me aflição o número de pessoas que vai à missa”

Apesar da vitalidade vivida no passado, Isabel Parreira mostra-se preocupada com o atual afastamento dos fiéis. “Faz-me aflição o número de pessoas que vai à missa… não é só na minha paróquia. As pessoas vão casar à igreja, batizam os filhos, mas depois não vão à Igreja. O que é que se passa?”

A falta de continuidade na prática religiosa leva-a a questionar: “Nas festas a Igreja enche-se, busca-se os sacramentos, e o resto?” Ainda assim, vê sinais de esperança, destacando a recuperação recente de um grupo de jovens “a trabalhar com muita vontade”.

Isabel Parreira partilha também inquietações pessoais: “Mesmo alguns dos meus filhos não vão. Eu pergunto porquê… Gostava de saber explicar mas não sei.”

Esta segunda feira assinala-se os 60 anos do encerramento do Concílio vaticano II, desejado e preparado pelo Papa João XXIII e presidido pelo papa Paulo VI.

Foi o 21º e mais recente concílio da Igreja Católica, convocado pelo Papa João XXIII para atualizar a doutrina da Igreja face ao mundo moderno. Realizado ao longo de quatro sessões,  buscou “aggiornamento” (atualização), levando a mudanças como a permissão de missas nas línguas locais, e a aprovação de documentos sobre a liturgia, a Igreja, a revelação divina e as relações com o mundo moderno. 

Vaticano II, 60 anos depois: a revolução que nunca acabou

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