O médico psiquiatra, natural de Tomar mas com “alma açoriana”, foi o orador da 20ª Conversa na Sacristia, em São José

O médico-psiquiatra João Mendes Coelho defendeu, na vigésima edição das Conversas na Sacristia, que “os talentos só fazem sentido quando postos ao serviço” e que o essencial da vida se resume “a uma resposta de amor ao outro”. A partir da parábola dos talentos, o especialista sublinhou que “o contrário do sentido não é o erro, é a omissão”, apelando a uma atitude de proximidade, sobretudo com os mais vulneráveis.
No encontro, que reuniu dezenas de pessoas na Igreja de São José, em Ponta Delgada, o psiquiatra foi claro sobre o que considera ser o núcleo da mensagem evangélica e da própria vida comunitária: “O que Deus pede não é que façamos perfeito. Pede que façamos. O outro não é alguém distante o outro somos nós.”
Referindo-se particularmente aos sem-abrigo, destacou que a maior ferida não é a falta de casa, mas a falta de reconhecimento: “A maioria destas pessoas está habituada a ser ignorada. O que precisam é de ligação: olhar, falar, ouvir. Não podemos normalizar que alguém viva desconectado do mundo.”
“Ser sem-abrigo é das experiências mais traumatizantes que existem. Não é só não ter casa — é não ser visto. Eles estão habituados a ser ignorados. O essencial é ligar: olhar, falar, ouvir. O outro somos nós.”
Alertou ainda para a fragilidade que atravessa todas as vidas: “Qualquer um de nós pode, por várias razões, tornar-se sem-abrigo. Não podemos normalizar a indiferença.”

A urgência de viver e de responder
João Mendes Coelho, que exerce no Hospital do Divino Espírito Santo e na Associação Novo Dia, em Ponta Delgada, e investiga na área das dependências e do suicídio, confessou que a parábola dos talentos o acompanha desde a infância e lhe incutiu “uma certa urgência de viver”.
“Há dias em que essa urgência é luz e outros em que é quase cómica, porque parece que há tanto para fazer em tão pouco tempo. Mas a pergunta é sempre a mesma: o que é que eu faço com o que me foi confiado?”
O médico sublinhou que a parábola não fala de produtividade nem de meritocracia: “Quem devolve dez talentos e quem devolve cinco recebe exatamente o mesmo elogio. Não há medalhas por quantidade. Há resposta.”
Instado pelo público a explicar como integra espiritualidade na prática clínica, Mendes Coelho afirmou tratar-se de “um domínio essencial do cuidado”.
“A medicina tem modelos biomédicos e psicossociais, mas falta-lhe, muitas vezes, o espiritual. As pessoas chegam cheias de dúvidas e angústias desse âmbito. Por que não falar disso? O meu propósito é que o outro se sinta visto e compreendido.”
A experiência nos cuidados paliativos, onde acompanha doentes em fim de vida, reforçou, disse, a sua visão do essencial: “Ali, o importante já não é sobreviver mais tempo. É cuidar. É amar até ao fim.”
A conversa abordou também alguns dos desafios sociais dos Açores, como o consumo de substâncias, violência doméstica e taxas de suicídio entre homens jovens.
“Muitos problemas têm origem em pobreza, fraca escolaridade e baixa literacia. Basta olhar para quem joga raspadinhas: maioritariamente pessoas pobres, que não conseguem resistir ao impulso e desconhecem a probabilidade porque não têm literacia económica. Continuam pobres.”
Para o psiquiatra, a resposta a estes fenómenos exige medidas concretas, mas também uma mudança cultural: “Temos de passar esperança. Sem esperança, não há futuro possível.”

Num dos momentos mais marcantes da sessão, Mendes Coelho relatou a história de um jovem paciente que, apesar de crescer rodeado de violência, pobreza e dependências, contrariou todas as estatísticas.
“Vê-lo hoje, trabalhador, pai de família, a quebrar um ciclo geracional de miséria… É impossível não me sentir pequeno ao lado destes gigantes anónimos.”
A concluir, o médico afirmou que o sentido da vida se revela sempre fora de nós, na relação e no cuidado: “Amor ao próximo, amor ao que está ali, amor ao pequeno. Na dúvida, amor. É isto que prepara, é isto que vigia, é isto que responde.” E, lembrou que a resposta não precisa de ser perfeita, apenas verdadeira.
“Deus não nos pede perfeição. Pede-nos coragem. Pede-nos que façamos. Que não enterremos o talento — que o entreguemos.”
João Mendes Coelho é médico-psiquiatra e adictologista no Hospital do Divino Espírito Santo e na Associação Novedia em Ponta Delgada. É doutorando e investigador na Escola de Medicina da Universidade de Domingo na área das dependências de drogas estimulantes e do suicídio, e perito da Task Force Assessores de Combate às Drogas Sintéticas. É cronista do açoriano Oriental.
As Conversas na Sacristia são um projeto de evangelização e diálogo cultural, artístico e científico realizado na Igreja de São José, em Ponta Delgada. O projeto procura criar um espaço de escuta, acolhimento e partilha, promovendo uma “Igreja de portas abertas” que dialogue com crentes e não-crentes sobre a vida, a fé e a cultura contemporânea através de diferentes expressões.