O Reino dos Céus ou «a paixão pelos limites»

Comentário a Mateus 22:1-14

28.º Domingo do Tempo Comum – A

uma parábola

Jesus não ensinou doutrinas nem dogmas. Falava em parábolas (ἐν παραβολαῖς), usando comparações e alegorias do quotidiano, ricas em conexões, que despertam a reflexão e a intuição.

Na matemática, uma parábola é uma função com os dois braços simétricos, sendo um a imagem do outro. Usando metáforas deste mundo, pálida imagem do artista divino, Jesus revela que o «outro mundo», presente dentro deste, se pode entender de modo análogo. Por exemplo, comparar o Reino dos Céus com uma boda matrimonial significa que ele pode ser entendido numa mística de sedução. E que ele se desenvolve num húmus da paixão.

 

o Reino dos Céus

O autor do Evangelho segundo Mateus terá sido um rabino. Enriqueceu o Cristianismo com a sua sabedoria vetero-testamentária e escreveu o seu Evangelho para cristãos de cultura judaica. Assim, em vez de empregar a expressão «Reino de Deus», como Marcos e Lucas, mais virados para os pagãos, substituiu «Deus» por «Céus», hábito no mundo rabínico, por respeito sagrado para com o nome do «Eterno».

Que traduz a expressão «Reino dos Céus» (ἡ βασιλεία τῶν οὐρανῶν)? Embora não se refira ao domínio político mundano, a uma monarquia teocrática humana, o Reino dos Céus é um conceito espiritual que afecta a vivência concreta das mulheres e dos homens que vivem na sociedade, a «Cidade» («pólis»), pelo que implica atitudes verdadeiramente políticas, desde brincar com os filhos, separar o lixo e dedicar-se seriamente ao estudo na escola, à honestidade no mundo do trabalho e à alegria vivida nas festas sociais.

O Reino dos Céus consiste em que Deus, Rei do Universo, transforma e guia misteriosa mas realmente a humanidade e o cosmos através da sua extrema solidariedade connosco, culminada na encarnação do seu filho, Jesus. É especialmente pela fé no amor verdadeiro que esse Reino cresce mais vigorosamente.

Os valores do Reino de Deus, cujas fronteiras estão muito longe de coincidir com as da Igreja, englobam, sobretudo, a dignidade da pessoa humana e da Natureza, a justiça e a fraternidade universal, a liberdade e a verdade, o perdão e a paz, comuns a todas as religiões e todos os sistemas filosóficos saudáveis, sejam de crentes ou de não crentes.

o pai do noivo

Não é legítimo estabelecer paralelismo entre o rei humano (ἀνθρώπῳ βασιλεῖ, v. 1) e Deus Pai, entre o noivo, seu filho (τῷ υἱῷ αὐτοῦ), e Jesus, Deus Filho, ou mesmo entre a não referida noiva e a Igreja, esposa de Cristo, na lógica de Paulo e do Apocalipse de João.

A parábola foca-se simplesmente nas atitudes de um rei que prepara uma boda para o seu filho. Como não é referido o género desta pessoa (cf. ἀνθρώπῳ), ela pode representar tanto um rei ou como uma rainha.

 

um excesso de zelo

Imagine o leitor, assim, como se sentirão uma mãe e um pai na preparação da boda do seu filho, que o texto dá a entender ser único. Concentram-se apaixonada e, por vezes, doentiamente na organização do evento.

Na intenção de encher a festa dos «melhores» da sociedade, nomeadamente os mais ricos e influentes, com vista a, futuramente, obter favores para o filho, elaboram uma lista sem atenderem à disponibilidade e ao interesse dos mesmos. Como ainda hoje acontece na confirmação prévia da presença, os «nãos», nestes casos, são muito frequentes. Eles não quiseram vir (v. 3).

Nem mesmo com a promessa do melhor gourmet (v. 4) se conseguiu confirmar a vinda da nova lista de VIPs, tão habituados estão a jantaradas de luxo. Não admitem que os retirem da boda do capital (v. 5); nem mesmo recorrendo à violência (v. 6) o rei os impede de trocar a festa do amor pela dedicação aos seus investimentos laborais.

As frustradas aspirações megalómanas da rainha e do rei levam-nos ao desespero. A sua consumição excessiva condu-los ao desespero, à cólera e à destruição (v. 7). Com efeito, planificar excessivamente e controlar ao pormenor levam ao eclipse do amor e secundarizam a paixão; ofegam a alegria e hipotecam a felicidade.

 

no extremo oposto

Cientes já de que, afinal, os «digníssimos» não eram «dignos» de tão opulento banquete, a mãe e o pai do noivo caem no exagero do desleixo, abrindo as portas a todo e a qualquer um, sem critério nem regra. Desencantados pelo rigor, viram-se para o laxismo. A festa enche-se, agora sim, de convidados, mas de toda espécie de gente, tanto má como boa (v. 10).

Ora, ao entrar para apreciar os convivas, os que prepararam a boda deparam-se com uma pessoa sem roupa adequada à ocasião. Questionada como entrou, emudeceu; ficou manente, pois, de facto, tinha sido convidada sem prévias condições. Novamente decepcionados consigo, e dando o dito por não dito, os chefes da festa ordenam que seja «amarrada», «levada» e «lançada» no exterior não iluminado, onde choraria e rangeria os dentes, de fome e de frio.

Não colocar limites é como correr um rio sem margens, derramado na planície, sem energia e sem velocidade. As fronteiras constituem um factor indispensável para o desenvolvimento do carácter e da criatividade.

 

o equilíbrio

O Reino dos Céus rege-se pelo equilíbrio. É preciso experimentar os extremos para sentir até onde a vida chega em cada limite, alcançando-se, deste modo, os valores do Reino. A sabedoria que oferece esse Reino de justiça e de verdade não consiste num meio termo morno, teórico, aprendido nas carteiras de um manual escolar ou de um catecismo morto. A paixão pelo Reino, que a parábola pretende acentuar, só se atiça na tentativa e, especialmente, no erro.

Quem nunca se perdeu nunca se encontrou.

 

Ricardo Tavares, In A Crença, 10.10.2014

donamaat@gmail.com

facebook.com/PadreRicardoTavares

Grão-de-Sal-07_0_dr_ia_600-400

Scroll to Top