Por Francisco Maduro Dias

Os dias deste fim de semana do calendário cristão católico espalham-se, nos Açores, entre as ideias de Todos os Santos, do Pão por Deus e dos Fiéis Defuntos.
Não é preciso ser praticante para notar como qualquer um dos três temas insiste na ideia de grupo, no entendimento da importância do conjunto, na relevância do olhar em volta.
Pareceu-me interessante notar isto, neste terreiro de letras, porque a verdade que temos à nossa volta vai noutro sentido, num tempo em que, desde o desporto à ciência, à economia, à política ou à cultura, se insiste em salientar e em premiar quem, individualmente, se fez notar ou chegou mais além, deixando na penumbra todo o seu redor de apoio, no silêncio os suportes diversos que existem sempre.
Comecemos pela ideia de Todos os Santos, que não contradizendo nada do que é referido acerca de cada um individualmente, num calendário extenso e completamente preenchido, inclusive no dia 29 de Fevereiro (São Osvaldo de Worcester), antes a amplia.
Ela é relevante exactamente porque insiste em não deixar ninguém de fora, chamando para o grupo todos os que nunca chegaram a ser vistos e percebidos como o sendo, pelos que viviam em seu redor, e chamando-nos a atenção para isso mesmo.
É um modo de ver duplamente agregador, pois são muitos os que se pretende celebrar, num universo enorme de desconhecidos, e leva-nos a sair do nosso cantinho, remetendo-nos para algo que nos ultrapassa e, portanto, nos leva a sair de nós próprios.
Passando ao Pão por Deus e ao gesto de dar e receber, em Seu nome, voltamos à mesma situação de grupo, de partilha, de doação e de troca.
Deixo de lado o burburinho em volta do Halloween porque, para mim pelo menos, a maior valia do Pão por Deus reside no gesto de haver alguém a dar e de alguém a receber e porque isso, podendo ser feito em ambiente festivo, é feito, neste dia, para os crentes pelo menos, sob o olhar de Deus e invocando-o.
Voltamos, aqui, a ser obrigados a sair do cantinho individual do costume, a tocar as mãos dos outros, uns dando outros recebendo.
A tradição recorda-nos que terá sido no aniversário seguinte ao terramoto de Lisboa, de 1755, que muita gente, absolutamente sem nada, pediu “pão, por amor de Deus”.
O ambiente festivo com que hoje se rodeia o Pão por Deus merece ser mantido, mas vem sendo referida por investigadores, cada vez com mais frequência, a incapacidade crescente em se aceitar os momentos de dificuldade por que todos passamos, em diversas ocasiões, ao longo da vida.
Sendo verdade que há quem não tem e quem tem, esta recordação do que foi o pós terramoto de 1755 – e se quisermos ser mais profundos, a recordação e o consultar as narrativas do que foi o pós terramoto, nos Açores, de 1757, o célebre “mandado de Deus” – deve levar-nos a pensar no que significa dar, ajudar, e receber, enquanto manifestação de partilha e de parceria, em solidariedade e comunidade. Ao mesmo tempo que convém nunca esquecer a enorme e absoluta fragilidade e inconstância do ter.
Finalmente, temos os Fiéis Defuntos.
Partilho aqui o que me aconteceu um dia, estava eu a guiar um grupo de estudantes americanos, da Escola Secundária das forças dos EUA, na base das Lajes.
Era a igreja de Nossa Senhora da Guia, do antigo Convento de São Francisco, hoje o edifício sede do Museu de Angra, e alguém perguntou o que significavam aquele números, nas pedras do chão.
Respondi, com toda a naturalidade, que eram números de sepulturas e que correspondiam a enterramentos.
A reacção foi de enorme susto, e os que tinham perguntado exclamavam: “Tem gente morta aqui debaixo!”, fazendo gestos e saltitando como se quisessem levitar sobre o chão, sem voltar a poisar os pés.
Passei a explicar algo que, agora, interessa trazer aqui, pelo que significa de relacionamento social, familiar, comunitário, e humano: “As comunidades que sepultavam os seus mortos nestas igrejas sabiam que tinham gente da sua família aqui e gostava de saber. Dava-lhes um sentido de comunidade, de sequência familiar, de continuidade, de não solidão! Ao participarem nas celebrações religiosas era como se estivessem, novamente, todos juntos, de algum modo. Era como se se revisitassem”.
Num tempo como este presente, em que o viver acontece sobretudo centrado no eu, ainda que com a ideia de liberdade individual associada, vale a pena recordar este fim de semana, onde sermos plurais e solidários é a tónica.
