Obrigado. Não sou mais do que um abraço

 

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo Padre José Júlio Rocha

Fonte do Bastardo e Porto Martins são duas freguesias vizinhas, sempre independentes uma da outra, mas irmanadas numa amizade telúrica que já tem alguns séculos. Aliás, o Porto Martins, tal como é hoje, com o seu manto de lava negra que lhe dá aquele clima único, nasce de um vulcão que terá explodido, antes da descoberta e povoamento das ilhas, na Fonte do Bastardo, derramando rios de lava pela encosta abaixo até chegar ao mar do que hoje é o Porto Martins.

Foi na Fonte do Bastardo que eu nasci, acabavam os anos sessenta, e o que mais me fascinava nessa terra natal era a encosta soberba da margem sul da Serra do Cume. Subia-se pela Ribeira dos Lagos, até onde, quinhentos anos antes, tinha nascido a freguesia, num sítio onde um bastardo tinha fontes de uma água tão límpida e pura que não existia noutros lugares como Praia e São Sebastião. Subindo essa encosta, a freguesia ficava cada vez mais aos nossos pés, cada vez mais longe, com a brancura das casas a entardecer ao sol, a imponência da Igreja imensa sobre todo o povoado. A Fonte do Bastardo tem muitos lugares de paisagem. Lugar de passagem entre Praia e Angra, a estrada alarga como em nenhum outro povoado da ilha, raiada pelas canadas onde vivem os seus habitantes.

Digam o que disserem, a Fonte do Bastardo é orgulhosa e tem brio naquilo que faz. Um dos exemplos mais conhecidos foi o da construção da Igreja, que dividiu a freguesia na segunda metade do século XIX, quando, no País, Regeneradores e Progressistas eram os partidos do “centrão”, que dominavam a política nacional. A freguesia viveu essa divisão aquando da construção da Igreja, um templo merecido numa terra que durante os primeiros três séculos e meio não teve igreja adequada à paróquia. Uns queriam a igreja mais acima, na zona do terreiro, onde se aglomeravam mais casas. Outros queriam que a Igreja ficasse exatamente a meio da paróquia, onde está agora, criando dois terreiros. Uns queriam uma igreja mais modesta, outros um templo imponente e a segunda versão ganhou, apesar de a igreja ter ficado dezenas de anos a meio das obras por falta de verba. Foi Francisco Soares de Oliveira, natural de lá e rico no Brasil, que ofereceu a verba para a finalização do templo, em 1904.

A alma da Fonte do Bastardo é generosa e impaciente. Quando é para tomar uma iniciativa, não se fica pelas meias medidas: quer ser a melhor. E às vezes consegue, como vemos em algumas iniciativas que brilharam.

O Porto Martins é um presépio e os seus habitantes são as figuras desse presépio. Parece daqueles presépios da nossa infância, que, no início, tinham meia dúzia de figurinhas mas, à medida que os Natais iam passando, íamos acrescentando mais imagens, mais casinhas, mais animais, leivas, currais, águas. Vai-se tornando maior, não menos bonito.

Terra simples e humilde, de gente dada, o Porto Martins era um cantinho esquecido, sem grande utilidade para a agricultura, o que fez com que os indígenas se dedicassem à cultura do vinho e de uma das mais estranhas e inesperadas produções agrícolas dos Açores: a famosa azeitona do Porto Martins.

Martim Anes, que ali construiu os maiores celeiros da ilha, foi um dos primeiros habitantes do lugar, que lhe tirou o nome e, por isso, talvez fosse mais justo Porto Martim e não Porto Martins.

Apesar de pequena, a aldeia sempre quis a sua autonomia em relação ao Cabo da Praia. Nos inícios do século XX, outro natural da terra e imigrado no Brasil, José Coelho Pamplona, o Visconde do Porto Martim, mandou ali construir uma igreja, no lugar onde já havia uma capela dedicada a Santa Margarida. Mandou fazer o Império e a despensa, bem como a escola, a uns mil metros da igreja. Cerca de cem anos mais tarde, o Porto Martins era paróquia e freguesia independente.

O apelo do mar, do turismo e do clima fizeram do Porto Martins aquilo que é hoje: uma freguesia linda, balnear, piscatória e agrícola ao mesmo tempo, onde mais de metade da população veio de fora, mas onde os naturais continuam, fielmente, ligados às suas mais belas tradições.

Durante dez e oito anos servi, respetivamente, o Porto Martins e a Fonte do Bastardo. Posso afirmar a pés juntos que ficaram muitas coisas por fazer, muitos sonhos por realizar. Esta é a maior verdade que posso dizer no momento da partida. Recebi carinho e amizade a rodos, mais paternal na Fonte do Bastardo, terra mãe, mais fraternal no Porto Martins. Terei feito tudo o que gostaria de ter feito? A minha consciência aconselha-me a não atirar foguetes na hora da despedida. Não fui o melhor que podia ter sido, mas tentei abrir os braços o mais que pude porque, tenho a certeza, é assim que começam todas as coisas, mesmo que não acabem: com os braços abertos.

Dei? Dei. Recebi? Muito mais. Enorme é a minha gratidão a essa gente saudável e alegre, esse recanto do Ramo Grande e de coração grande.

Um desejo me resta. Depois de todos estes anos, que tenha ficado um rasto, uma pequena mudança, um resultado modesto: maior amizade com Jesus, mais fraternidade entre todos.

Deixo-vos o que sou: um abraço.

+Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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