Padre Silvino Amaral: 91 anos de luta e fé na Ribeira Quente

Da denúncia às autoridades ao abraço ao seu povo, o pároco que marcou gerações recorda uma vida inteira dedicada à comunidade e à “pastoral do serviço”

Foto: Igreja Açores/CR

À entrada da Ribeira Quente, entre a montanha e o mar, há um nome que se confunde com a própria história da freguesia. Aos 91 anos, o padre Silvino Amaral recorda, com serenidade, um percurso de vida feito de fé, luta e entrega total a uma comunidade que abraçou como família.

“A minha vocação nasceu graças à minha mãe”, começa por dizer numa entrevista ao programa de rádio Igreja Açores que vai para o ar este domingo, ao meio-dia.

Depois do desgosto de ver um filho abandonar o seminário, foi ela quem incentivou o filho Silvino a seguir esse caminho.

“Perguntou-me se eu gostaria de ir para o seminário. Eu dizia: quem me dera! Sem saber o que estava a dizer.” Com a ajuda do padrinho, que se responsabilizou pelas despesas, o jovem seguiu para os estudos e nunca mais voltou atrás.

Foram doze anos de seminário, mais um de pós-seminário, marcados por exigência e dúvidas.

“Era um seminarista mediano, notas sempre cá para baio, embora nunca tenha chumbado. Cheguei a pedir para me mandarem para casa. Mas o reitor respondeu: agora é que não te largo.” Assim, quase por insistência alheia, abraçou o sacerdócio.

Ordenado numa época de transformação, o padre Silvino Amaral viveu de perto as reformas do Concílio Vaticano II. O abandono do latim, a introdução do vernáculo nas celebrações, a aproximação entre Igreja e povo marcaram-no profundamente.

“Era uma necessidade absoluta”, afirma.

Foi então enviado para a Ribeira Quente. O ouvidor avisou-o: não seria por muito tempo, tratava-se de uma paróquia pobre e isolada. Mas o jovem padre encontrou algo maior: “Cheguei aqui e vi um povo abandonado, casas invadidas pelo mar, terras destruídas. Era um protótipo de abandono.”

Inquieto perante a indiferença das autoridades, tomou a iniciativa. Escreveu ao ministro Arantes de Oliveira a denunciar a situação. A primeira resposta foi fria: a freguesia não tinha “valor real” para justificar uma obra de proteção marítima. Indignado, voltou a escrever, desta vez apelando ao drama humano. O governo recuou e a proteção foi construída — ainda que sem os reforços prometidos. “Até hoje continuo revoltado”, desabafa.

O jovem sacerdote cedo percebeu que o seu papel ultrapassava as paredes da igreja.

“O padre tinha de ser o advogado, o protetor, o defensor das causas do povo.”

Essa postura valeu-lhe rótulos incómodos — chegou a ser chamado de “padre comunista” por acolher um professor com ligações ao partido comunista e depois ao PS. Mas não recuou: “Disse ao bispo que, se me quisesse substituir, que fosse por alguma coisa de mal que eu tivesse feito, e não por estar a ajudar o meu povo.”

Ao longo das décadas, a Ribeira Quente transformou-se com a sua liderança. Fundou-se o primeiro agrupamento misto de escuteiros do país, nasceu um centro social, multiplicaram-se grupos de música, folclore e desporto.

“Tudo era pretexto para partilhar, conviver, animar a freguesia”, afirma.

Havia ainda as assembleias paroquiais, mensais, onde o padre prestava contas e ouvia a comunidade. Um `antecipação´ da tão falada sinodalidade.

“A sinodalidade da Igreja é todos nós, de mãos dadas. A Igreja não são os Papas ou os bispos, com todo o respeito. Isso é  linguagem gasta, que está estragada. A Igreja somos nós os batizados. A multidão de batizados…Ninguém é mais do que ninguém. Estes domingos a Palavra tem-nos dito isso” afirma o padre Silvino.

Foto: Igreja Açores/CR

“ Hoje o mundo tem outras centralidades; se nós não formos ao encontro delas não podemos mostrar a razão da nossa esperança que é Cristo e que é o irmão, o que está próximo e precisa que olhemos por ele. A nossa centralidade como cristãos é Cristo. É fé. Uma só fé, um só Senhor, um só batismo. E tudo isto nos congrega. Tudo isto nos reúne. Há coisas que parecem pagãs. Um jantar, um beberete. É das melhores oportunidades para evangelizar” acrescenta ainda.

“Naquele tempo eram tardes inteiras, com refeições comunitárias. Um porco, uma cabra… sempre motivo para nos juntarmos.”

Hoje, com a freguesia mais despovoada e fragilizada, o padre Silvino reconhece as dificuldades que persistem — da habitação ao avanço do mar. Mas mantém a convicção de que este é “um povo bom, de fé, que sabe o que quer e precisa apenas de quem olhe por ele”.

Defende uma Igreja próxima e viva: “Nós padres não podemos estar com um pé fora e outro dentro, à espera de fazer carreira. A missão é estar junto do povo, criar cumplicidade, ser um deles.” É por isso que se revê no Papa Francisco, que considera “um homem voltado para a fragilidade das coisas”.

Ao olhar para trás, o padre Silvino Amaral interroga-se se terá  “martirizado o povo com a sua monotonia de vida”? Mas, logo responde: “Fiz o melhor que pude para os enriquecer, para tornar a sua vida melhor. É isso que o evangelho nos ordena. É isso que nós padres temos de escutar e anunciar através de gestos concretos junto do novo rebanho”

“A missão do padre é esta: estar junto do seu povo e ter esta cumplicidade com ele. Só assim anunciamos o Evangelho.”

A entrevista,  na íntegra,  do padre Silvino Amaral vai para o ar este domingo, depois do meio dia na Antena 1 Açores e no Rádio Clube de Angra. Pode também ser ouvida aqui no Sítio Igreja Açores a partir de domingo.

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