Papa apresenta projeto de Europa centrada nas pessoas e livre de hegemonias políticas

Francisco discursou perante eurodeputados

O Papa encerrou no Conselho da Europa uma visita de quatro horas à cidade francesa de Estrasburgo, apresentando um projeto europeu centrado na dignidade humana que respeite as “raízes” do continente, livre de “hegemonias” políticas.

Perante a assembleia parlamentar desta instituição, Francisco elogiou o “património genético da Europa” que deve ajudar a projetar os desafios do continente e a construir as “utopias do futuro”.

A intervenção, em italiano, lembrou o “grave problema do trabalho”, especialmente as elevadas taxas de desemprego juvenil que se registam em muitos países, “uma real hipoteca que grava sobre o futuro”, bem como a “questão da dignidade do trabalho”.

“Espero vivamente que se instaure uma nova cooperação social e económica, livre de condicionalismos ideológicos, que saiba encarar o mundo globalizado, mantendo vivo o sentimento de solidariedade e caridade mútua que tanto caraterizou o rosto da Europa, graças à obra generosa de centenas de homens e mulheres – alguns considerados Santos pela Igreja Católica”, disse o Papa.

Os pobres da Europa, acrescentou Francisco, pedem “não só o pão para se sustentarem”, o mais “elementar” dos direitos, mas também a possibilidade de “redescobrirem o valor da sua vida, que a pobreza tende a fazer esquecer, e reencontrar a dignidade conferida pelo trabalho”.

O Papa apontou depois aos desafios da “multipolaridade e da transversalidade”, para superar a “antiga conceção Roma-Bizâncio-Moscovo”, um esquema que é “fruto de reducionismos geopolíticos hegemónicos”, e afirmou que a Europa tem de “de globalizar de forma original esta multipolaridade” em que as culturas não se identificam necessariamente com os países.

“Globalizar de forma original a multipolaridade implica o desafio de uma harmonia construtiva, livre de hegemonias que, embora pragmaticamente pareçam facilitar o caminho, acabam por destruir a originalidade cultural e religiosa dos povos”, declarou.

Francisco sublinhou, por outro lado, que é necessário falar duma Europa “dialogante” que faz com que a transversalidade de opiniões e reflexões “esteja ao serviço dos povos harmoniosamente unidos”.

“Uma Europa que dialogue apenas dentro dos grupos fechados a que se pertence fica a meio do caminho; há necessidade do espírito juvenil que aceite o desafio da transversalidade”, apelou, elogiando a aposta do Conselho da Europa no diálogo intercultural, incluindo a sua dimensão religiosa.

O Papa argentino defendeu que o diálogo entre a sociedade europeia inteira e o Cristianismo servirá para “enfrentar um fundamentalismo religioso que é inimigo sobretudo de Deus” e para “obstar a uma razão reduzida que não honra o homem”.

Este diálogo, acrescentou, passa pela defesa dos Direitos Humanos, em particular pelos temas relacionados com a proteção da vida humana, “questões sensíveis que precisam de ser submetidas a um exame cuidadoso que tenha em conta a verdade do ser humano integral”.

Tal como no Parlamento Europeu, onde pediu que o Mediterrâneo não seja um “cemitério” de imigrantes, o Papa apelou ao acolhimento destas populações, “que precisam primariamente do essencial para viver, mas sobretudo que lhes seja reconhecida a sua dignidade de pessoas”.

Outra preocupação renovada no Conselho da Europa foi a defesa do meio ambiente, para que todos possam “viver com dignidade”.

 

Entretanto , no Parlamento Europeu, perante os eurodeputados, o Papa disse que a alma do Velho Continente está ameaçada por “doenças” como a “solidão” e as consequências da crise económica e social.

“Uma das doenças que hoje vejo mais difundida na Europa é a solidão, típica de quem está privado de vínculos. Vemo-la particularmente nos idosos, muitas vezes abandonados à sua sorte, bem como nos jovens privados de pontos de referência e de oportunidades para o futuro”, declarou Francisco, na primeira das duas intervenções previstas durante a visita à cidade francesa.

A este problema, acrescentou, juntam-se estilos de vida “egoístas”, caraterizados por uma “opulência atualmente insustentável e muitas vezes indiferente ao mundo circundante, sobretudo dos mais pobres”, passagem do discurso que mereceu uma salva de palmas dos eurodeputados.

“No centro do debate político, constata-se lamentavelmente a preponderância das questões técnicas e económicas em detrimento de uma autêntica orientação antropológica”, advertiu.

Neste contexto, o Papa condenou o recurso à eutanásia e o aborto, como frutos de uma visão que reduz o ser humano “a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo a ser utilizado”.

“A vida – como vemos, infelizmente, com muita frequência –, quando deixa de ser funcional para esse mecanismo, é descartada sem muitas delongas, como no caso dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer”, precisou.

Para Francisco, é fundamental “cuidar da fragilidade”, o que revela “força e ternura, luta e fecundidade no meio dum modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à «cultura do descarte»”.

Francisco chegou aeroporto de Estrasburgo/Entzheim, deslocando-se de automóvel para o Parlamento Europeu, onde foi recebido pelo presidente da instituição, Martin Schulz, para a execução dos respetivos hinos, antes de se deslocar para a entrada de honra.

O Papa cumprimentou os membros do secretariado do Parlamento e os presidentes dos oito grupos políticos da assembleia, assinando o livro de ouro.

No hemiciclo, perante os deputados eleitos pelos Estados-membros da União Europeia reunido em sessão solene, onde foi recebido por uma salva de palmas, Francisco sublinhou que a crise económica traz ainda “consequências dramáticas do ponto de vista social” e gerou “desconfiança dos cidadãos relativamente às instituições” comunitárias, criticando o “tecnicismo burocrático”.

O primeiro Papa não-europeu a liderar a Igreja Católica desde 741 apresentou-se como um “pastor” que quer dirigir a todos os cidadãos europeus “uma mensagem de esperança e encorajamento”.

“Como fazer para se devolver esperança ao futuro, de modo que, a partir das jovens gerações, se reencontre a confiança para perseguir o grande ideal de uma Europa unida e em paz, criativa e empreendedora, respeitadora dos direitos e consciente dos próprios deveres?”, questionou.

Em resposta, o discurso evocou o fresco de Rafael, que se encontra no Vaticano, representando a chamada ‘Escola de Atenas’, com Platão e Aristóteles a apontarem, respetivamente, para o céu e para a terra, “a a abertura ao transcendente, a Deus” e a “capacidade prática e concreta de enfrentar as situações”.

“Uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma”, alertou Francisco.

O último Papa a visitar o Parlamento Europeu tinha sido João Paulo II, a 11 de outubro de 1998.

Francisco referiu, a este respeito, que “muita coisa mudou na Europa” desde então, falando num continente “envelhecido” que tem de saber voltar “à firme convicção dos pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a paz”.

 

“No centro deste ambicioso projeto político estava a confiança no homem, não tanto como cidadão ou como sujeito económico, mas no homem como pessoa dotada de uma dignidade transcendente”, observou.

Durante a visita, o Papa cumprimentou a alemã Helma Schmidt, que o acolheu na sua casa, durante dois meses, em 1985.

Esta foi a segunda viagem internacional do atual pontificado na Europa, após a visita à Albânia, no dia 21 de setembro, e mais curta de um Papa no estrangeiro, com uma duração de cerca de quatro horas.

 

CR/Ecclesia

 

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