Papa rejeita instrumentalização da religião para justificar guerras

Foto: Lusa/EPA

O Papa denunciou hoje, na sua primeira mensagem para o Dia Mundial da Paz, a instrumentalização da religião para fins violentos, rejeitando discursos de exclusão e guerra.

“Infelizmente, faz parte do panorama contemporâneo, cada vez mais, arrastar as palavras da fé para o embate político, abençoar o nacionalismo e justificar religiosamente a violência e a luta armada”. refere Leão XIV, na mensagem para o 59.º Dia Mundial da Paz, que se celebra a 1 de janeiro de 2026.

O texto, divulgado pelo Vaticano, destaca que as grandes tradições espirituais convidam os crentes a ir “além dos laços de sangue e étnicos”.

“Os fiéis devem refutar ativamente, antes de tudo com a sua vida, estas formas de blasfémia que obscurecem o Santo Nome de Deus. Por isso, juntamente com a ação, é mais do que nunca necessário cultivar a oração, a espiritualidade, o diálogo ecuménico e inter-religioso como caminhos de paz e linguagens de encontro entre tradições e culturas”, exorta Leão XIV.

O Papa convida cada comunidade cristã a tornar-se uma “casa de paz”, onde se neutraliza a hostilidade através do diálogo e onde se pratica o perdão, mostrando ao mundo que a concórdia “não é uma utopia”.

A mensagem propõe revolução “silenciosa” baseada na paz de Cristo, apresentando-a como uma realidade “desarmada e desarmante” que deve transformar as relações pessoais e comunitárias.

“Os sucessores dos apóstolos exprimem todos os dias e em todo o mundo a revolução mais silenciosa: ‘A paz esteja convosco!’. Desde a noite da minha eleição como bispo de Roma, quis inserir a minha saudação neste anúncio”, escreve o pontífice.

O texto retoma a primeira saudação do sucessor de Francisco, a 8 de maio, quando se dirigiu à multidão reunida na Praça de São Pedro com a saudação “A paz esteja convosco”, apresentada agora como uma “mudança definitiva” para quem a acolhe.

“A paz de Jesus ressuscitado é desarmada, porque desarmada foi a sua luta, dentro de precisas circunstâncias históricas, políticas e sociais”, sustenta o Papa, convidando os fiéis a libertarem-se interiormente do “engano da violência”.

O documento, intitulado ‘Rumo a uma paz desarmada e desarmante’, alerta para o risco de ceder a “narrativas privadas de esperança” e marcadas pelo medo.

Leão XIV elogia os promotores da paz que, “no drama daquilo que o Papa Francisco definiu como ‘terceira guerra mundial em pedaços’, ainda resistem à contaminação das trevas, como sentinelas na noite”.

O Papa cita o pensamento de Santo Agostinho para lembrar que a paz deve ser primeiro uma conquista interior: “Se quereis atrair os outros para a paz, tende-a vós primeiro”.

Esta paz, acrescenta, não é um ideal distante ou passivo, mas uma “presença e um caminho” que exige escolhas concretas no quotidiano.

“A bondade é desarmante. Talvez por isso Deus se tenha feito criança”, reflete o pontífice, recordando a celebração do Natal e apontando o cuidado com os mais frágeis e com as crianças como caminho para desarmar o coração.

Por outro lado, alerta para a  “irracionalidade” de uma segurança global baseada no medo e na força, denunciando o aumento contínuo das despesas militares e os novos perigos associados à tecnologia nos conflitos armados.

“Os repetidos apelos para aumentar as despesas militares – e as escolhas que disso decorrem – são apresentados por muitos governantes com a justificativa da periculosidade alheia”, lamenta, na mensagem para o 59.º Dia Mundial da Paz.

Leão XIV cita dados referentes a 2024, ano em que as despesas militares mundiais aumentaram 9,4%, atingindo 2,72 biliões de dólares (cerca de 2,5% do PIB mundial).

O documento recupera os alertas de São João XXIII e do Concílio Vaticano II, há mais de 60 anos, para condenar a lógica da “dissuasão nuclear”, afirmando que esta encarna uma relação entre povos baseada não no direito, mas no domínio da força.

Um dos pontos centrais do texto é o alerta sobre a aplicação da Inteligência Artificial (IA) no campo militar, que segundo o Papa “radicalizou a tragédia dos conflitos armados”.

Leão XIV adverte para um processo de “desresponsabilização dos líderes políticos e militares”, criticando o crescente “delegar às máquinas as decisões relativas à vida e à morte das pessoas”.

“É uma espiral de destruição sem precedentes, que compromete o humanismo jurídico e filosófico do qual qualquer civilização depende”, adverte.

A mensagem critica também as mudanças nas políticas educativas e nos meios de comunicação, que, em vez de promoverem uma “cultura da memória” sobre os horrores da guerra, difundem a perceção de ameaça constante e uma noção de segurança “meramente armada”.

Leão XIV pede que se denunciem as “enormes concentrações de interesses económicos e financeiros privados” que empurram os Estados para a guerra, mas sublinha que tal denúncia deve ser acompanhada pelo despertar das consciências.

O texto defende um “desarmamento integral” que comece no espírito, defendendo que a verdadeira paz só pode basear-se na confiança mútua e não no equilíbrio do “terror”.

Por isso, o Papa apela aos governantes de todo o mundo que retomem o “caminho desarmante da diplomacia”, pedindo o fortalecimento das instituições supranacionais em vez da sua deslegitimação.

“É o caminho desarmante da diplomacia, da mediação, do direito internacional, infelizmente contrariado por violações cada vez mais frequentes de acordos alcançados com grande esforço”, lamenta Leão XIV, na mensagem para o 59.º Dia Mundial da Paz, a celebrar no primeiro dia de 2026,

O Papa aborda a dimensão política da construção da paz, num contexto de “desestabilização planetária” cada vez mais imprevisível.

O documento pede aos responsáveis políticos que investiguem a fundo a melhor forma de harmonizar as comunidades a nível mundial, baseando-se na “sinceridade dos tratados e na fidelidade aos compromissos assumidos”.

Leão XIV adverte contra a tentação do “fatalismo” perante a globalização e os conflitos, rejeitando a ideia de que as dinâmicas atuais são fruto de forças anónimas impossíveis de controlar.

Para contrariar a estratégia de quem procura “semear o desânimo”, o Papa propõe o desenvolvimento de “sociedades civis conscientes” e formas de associativismo que promovam a participação não violenta.

“É necessário motivar e apoiar todas as iniciativas espirituais, culturais e políticas que mantenham viva a esperança”, escreve.

Citando a encíclica ‘Rerum Novarum’ de Leão XIII, escrita no final do século XIX, o Papa sublinha a importância da cooperação e da justiça restaurativa, tanto em pequena como em grande escala, lembrando que a dignidade humana está hoje exposta aos “desequilíbrios de poder entre os mais fortes”.

O Dia Mundial da Paz foi instituído, em 1968, pelo Papa São Paulo VI, e é celebrado no primeiro dia do novo ano.

(Com Ecclesia)

 

 

 

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