Pensilvânia: “A vergonha da Igreja”

Por Carmo Rodeia

As palavras usadas no título deste entrelinhas são do Papa Francisco. E tomo-as de empréstimo para classificar a alegada atuação de cerca de três centenas de padres, que terão abusado de menores ao longo de 70 anos no estado norte americano da Pensilvânia.

As palavras do Papa Francisco foram proferidas numa homilia recente em Santa Marta e destinavam-se a qualificar outro escândalo de pedofilia no Chile, mas  certamente aplicam-se também a esta notícia tornada pública depois do trabalho da justiça norte americana.

Dizia o Santo Padre a propósito do Chile, que “é preciso envergonhar-se” com os vários escândalos que abalaram a Igreja Católica. “Tantos escândalos que não quero mencionar individualmente, mas que todos sabemos quais são… Escândalos que alguns tiveram de pagar caro. E isso está bem! Deve ser assim… a vergonha da Igreja”. E prosseguiu: “Mas temos vergonha destes escândalos, destas derrotas de sacerdotes, bispos e laicos?”.

Os responsáveis envolvidos nestes escândalos “não tinham uma relação com Deus. Tinham uma posição na Igreja, uma posição de poder e também de comodidade, mas não a palavra de Deus”, concluía Francisco.

Já houve outros relatórios sobre abusos sexuais dentro da Igreja Católica. Mas nunca nesta escala. Nem na Irlanda nem na Austrália, onde no ano passado as notícias mostravam que cerca de 4500 crianças australianas teriam sido vítimas de crimes sexuais em mais de mil instituições católicas espalhadas pelo país, entre 1980 e 2015, o que fazia com que 7% dos padres católicos australianos fossem pedófilos.

Os jurados norte americanos da Pensilvânia investigaram durante dois anos seis das oito dioceses do estado, concluindo que mais de 300 padres abusaram de menores ao longo de 70 anos. Não menos chocante é o facto de alegadamente esses crimes terem sido encobertos pela Igreja Católica ao longo de décadas; em alguns casos o silêncio das vítimas foi comprado.

A denúncia deste caso terá surgido pelo punho de um bispo local que colaborou com a polícia e as autoridades judiciais. Aliás, o relatório sublinha o facto de nos últimos 15 anos a atitude de denuncia da Igreja ser cada vez maior, correspondendo desde logo a este desafio do Papa Francisco, iniciado ainda por Bento XVI, de “decretar” tolerância zero aos abusos. O último exemplo desta determinação de Francisco contra a pedofilia dentro da Igreja foi a retirada da condição de cardeal a um arcebispo de Washington, McCarrick, hoje com 88 anos, coisa que não acontecia desde há quase cem anos.

O que acontece na Igreja acontece também noutros lugares. Sobretudo, instituições fechadas. A diferença está na frequência com que as notícias a envolver a igreja acontece, que é muito maior porque a igreja está mais exposta, confirmando assim que ainda é vista (e bem!) como uma espécie de reserva moral da consciência social. E, por conseguinte, à luz dos valores que professa, os seus membros têm uma responsabilidade acrescida, tal como têm os governantes na gestão da coisa pública e são acusados de corrupção.

O abuso sexual de menores é um crime público hediondo, cuja gravidade e censura social aumenta quando é praticado por alguém de quem se esperava algo melhor, tendo em conta o que anuncia e o que pratica. Pessoas que tinham como dever primeiro cuidar e que, ao invés, destroçaram a dignidade de indefesos. Julgo que esta é, sem margem para erro, uma convicção formada no seio da própria Igreja.

O que já não é nem pode ser aceitável é que se utilizem estes crimes para fomentar uma guerra entre as virtudes do laicismo e a falta delas no seio da Igreja, porque nessa guerra pouco importa o bem das vítimas mas sim a possibilidade de se encontrarem argumentos, ainda que grosseiros, para generalizações do género `todos os padres são pedófilos´ ou a `igreja é um logro e não tem autoridade moral para defender o que defende´. E muito menos, que estes dados sejam utilizados como arma de arremesso contra o Papa Francisco pelos seus detratores, muitos deles se calhar encobridores destes crimes no passado.

A reação do Vaticano ao relatório da Pensilvânia foi inequívoca: a Igreja sente vergonha e tristeza ao tomar conhecimento dos casos de pederastia praticados por sacerdotes, que considera criminosos. E fez saber que o Papa está do lado das vítimas, condenando “inequivocamente o abuso sexual de menores”.

“Os abusos descritos no relatório são criminal e moralmente repreensíveis”, afirmou o porta voz da Sala de Imprensa Greg Burke. “Esses atos são traições de confiança que roubaram a dignidade e a fé aos sobreviventes. A Igreja tem de aprender lições duras do seu passado e deve haver responsabilidades tanto para os abusadores, como para aqueles que permitiram que os abusos ocorressem”, enfatizando-se a “necessidade de cumprir a lei civil”, incluindo os requisitos de abuso infantil.

O Papa enganou-se quanto a um prelado do Chile, que defendeu por mais do que evidente deficiente informação. Mas depressa reconheceu o erro e agiu decididamente em relação ao problema chileno, como é sabido.

O que nós esperamos do Papa é que continue a procurar que este cancro seja eliminado da Igreja, por muito que as revelações dos crimes e do seu encobrimento suscitem escândalo e até o afastamento de muitos cristãos. Como tem feito até agora, ciente de que  só a verdade liberta. E a igreja, embora feita de homens e mulheres, é muito mais do que isso.

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