Pequena pausa de trinta aninhos

Quase como se fosse por acaso. Aqui há uns meses encontrei os olhos do Leonardo, que já não via há mais de 30 anos.

Tudo tinha mudado no dono dos olhos. Estava quase careca, mais alto (muito mais alto), mais gordo, mais casado, mais com dois filhos, mais com o peso de 45 anos em cima da vida. Os olhos e o olhar estavam intactos. O mesmo olhar de cão, fiel sem preço nem condições, cão daqueles que nos olham à espera de uma carícia, cão de Erico Veríssimo, “que vinha lamber as mãos dos que lhe davam pontapés”. Esses olhos eram o ponto mais alto da sua dignidade.

O Leonardo (nome suficientemente fictício) era meu amigo de pré-adolescência. Amigo mais ou menos prescindível, mas de quem todos precisamos, porque é o primeiro a rir – e ri sempre – das nossas piadas, o que está sempre de acordo connosco diante dos outros, mesmo que discorde a sós.

O Leonardo nunca se ofendia. Podia até chorar sozinho, fazer uma careta de amuo que, em dez segundos, se recompunha no olhar humilde de quem pede desculpa. Eu era uma espécie de herói à escala doméstica para ele, o que quer dizer exactamente que podia fazer o que quisesse. E fazia. Gozava com ele, descarregava as minhas pequenas frustrações sobre a sua paciência, desabafava e, em dias mais aziagos, junto com os outros colegas, carregava sobre ele as piadas mais castiças. Impreterivelmente era ele a vítima. Normalmente defendia-o, às vezes não.

Pela vida fora, nesses anos de ausência, ficaram-me na memória, como um cheiro ou uma música, os olhos do Leonardo a pedirem. Desculpa ou socorro.

Até que nos reencontrámos e nunca deixaremos de ser crianças. Porque a nossa amizade teve apenas um pequeno intervalo. Porque todos nós continuamos a ser infantis, com comportamentos infantis, bem envernizados, como quando não se pensa no que se faz mas apenas nos fins, como o que se passa na economia, na política, na Igreja, madre, santa, etc.

Encontrámo-nos na casa de um amigo comum, com mais de meia dúzia de convivas que eu não conhecia. E eu padre, o que, em tais circunstâncias, é uma mais-valia em termos de timidez.

Falava-se de Jesus e de algumas questões de veracidade histórica e o Leonardo interveio com uma das suas saídas a respeito de papiros e Egipto e grutas subterrâneas e Jesus no meio disto tudo sabe-se lá como. A minha entrada foi de mestre: “acho que Jesus andou de metro no Cairo a corrigir esses papéis”! Gargalhada geral, meu momento de fama e o sorriso dos convivas diante de um padre tão terra-a-terra… E os olhos do Leonardo. Pousados em mim como quem cai em si, como quem desiste, como quem apanha um choque de 220 voltes e não se mexe e grita por dentro. Os olhos de quem já não se lembrava bem como era há 30 anos. Tudo isso e a nossa amizade de infância condensados nos três segundos que antecederam a gargalhada com que nos acompanhou. Magoou-me a facilidade com que nunca – nem mesmo ali – me preocupei com os olhos do Leonardo.

É fácil pisar a dignidade dos que nos são fiéis. Também dos que nos amam. Até dos que nunca desistem de nós. Dos que nos pedem desculpa. Dos que nós chamamos família. Às vezes basta só apetecer… É como uma espécie de lei natural, instinto que precisa ser controlado. E aprendemos quase só pelo arrependimento.

A bondade, virtude humana e cristã sempre em reconstrução, é a arte suprema de vencer essa guerra sem precisar de arrependimento. A Família agradece.

 

Pe Júlio Rocha

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