Crónica de uma morte anunciada

Pelo padre José Júlio Rocha

Todos os velhos são feios. Todas as crianças são lindas. Há aqui algo de desonestamente injusto e terrível, uma espécie de destino traçado, inexorável e silencioso, que nos conduz, anos fora, a uma exclusão social aceite por quase todos.

O ti Xico não era ti Xico mas, aqui, vai ficar por ti Xico porque era demasiado feio e absolutamente triste para que eu lhe chamasse pelo seu nome. Fora casado e não lhe sobrou a dita de ter filhos, de modo que, quando enviuvou – coisa que nunca devia acontecer a homens porque não sabem o que fazer da viuvez – criaram-se-lhe umas rugas que vinham dos olhos até aos cantos da boca, as sobrancelhas arquearam-se para cima, numa curva que dava aos olhos a abundante tristeza de um cão pedinte.

A casa velha envelheceu ainda mais e, todas as vezes que eu o via a conversar com alguém, sabia que, de uma forma ou de outra, estaria a chorar, porque a sua voz virava falsete, de cãozinho a ganir, como se a única forma de sobreviver fossem as lágrimas.

Fora razoavelmente feliz enquanto casado, mulher valente e bem-disposta, que cuidava dele e o mantinha limpo, lavado, de bem com a vida. Agora cheirava a velho. O cheiro a velho é peganhento, como se puséssemos couves com cebola durante três dias num saco e o abríssemos diante do nariz. Andava sujo e encurvara o espinhaço, pesado da idade e de não ter filhos nem sobrinhos nem ninguém a não ser os vizinhos que não conseguiam sentir outra coisa senão pena do velho.

Todos temos pena dos velhinhos, coitadinhos, especialmente das almas mais abandonadas nos lares da terceira idade, nas casas velhas das freguesias e das cidades, onde se chega à quarta idade, aquela a que se chega quando se morre ainda com o coração a bater.

Ser velho é ter a morte ao alcance de um tiro de fuzil. É ter vivido muito e ter pouco para viver. Antigamente os velhos tinham a imponência dos sábios, a autoridade dos mestres, a calma dos anos de experiência. Agora têm a quarta classe ou pouco mais sabem do que ler e escrever. A experiência da vida, hoje, tem a validade de uma viola num enterro. Não servem para nada os velhos. Ou se servem, é para termos o peso de consciência de não cuidarmos deles como eles cuidaram de nós. E, no entanto, é para lá que todos nós caminhamos, à velocidade de 365 dias por ano, 24 horas por dia, 60 minutos por hora. Todos.

Com o pandemónio da covid-19, imaginem quem é mais ostracizado? A vida tem que recomeçar. A escola precisa de abrir as suas portas, o comércio não essencial necessita de fôlego, tudo, devagarinho, vai voltar a uma espécie de normalidade que nunca mais será a mesma. Tudo menos os velhos. Com ou sem vacina, os velhos vão continuar fechados, blindados nos lares ou a dizer adeus aos netos pelo lado de dentro das janelas velhas das velhas casas. Para defesa da sua saúde nem mais um beijo, nem mais uma carícia, um abraço, qualquer coisa que possa acontecer a menos de três metros de distância.

Senti isso na carne, ontem, quando fui levar algumas compras a minha mãe, fechada em casa, só, que me abriu uma nesga da porta e, com as sobrancelhas arqueadas como as do ti Xico, estendeu a mão para mim “deixa-me só tocar no teu braço, filho”.

Os velhos vão perdendo todas as faculdades, apagam-se todas as potencialidades, energias, forças. Só não perdem a capacidade de sentir e de sofrer. Esta permanece intacta. E vão morrendo de solidão, gota a gota, para não morrerem da covid-19. E nós com pena deles.

O ti Xico, com as rugas cada vez mais fundas como dois regos de semear batatas, foi morrendo devagarinho até que morreu de vez. “Graças a Deus que deixou de sofrer”, comentaram os vizinhos, aliviados de não verem mais aquele escolho que lhes barrava a consciência à porta de casa.

Heidegger, conturbado no balanço existencial entre a fé e o nada, dizia que “o homem é um ser para a morte”. Um provérbio húngaro diz, no entanto, que na cova do lobo não há ateus. Que seria dos nossos idosos, que veem a “Canção Nova”, rezam o terço em contas desbotadas e suplicam a misericórdia do Altíssimo, se não fosse a fé num Deus que os ama como se fossem crianças?

Não. Esta crónica não é pessimista.

*Esta crónica foi publicada no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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