Pelo padre José Júlio Rocha

Santidade
Sei que é uma ousadia da minha parte adivinhar-lhe o nome. Isso só lhe será permitido no fim silencioso do Conclave, quando os cardeais se erguerem, depois das palmas, depois de mais de 90 cardeais lhe terem entregue o destino da Igreja, antes de vestir a batina branca, ali, à sua espera, antes de aparecer na Loggia, diante da Praça e do mundo. Mas quero que saiba que, se esse nome for proferido pelo cardeal Decano, o meu coração exultará.
Peço-lhe, pelo amor de Deus, só uma coisa, um pormenor apenas, um pequeno detalhe: não se esqueça dos sapatos do Papa Francisco. Aqueles sapatos têm a idade simbólica de dois mil anos, fazem parte da mais pura Tradição cristã. O Papa Francisco foi buscá-los às veredas da Galileia, ao chão térreo das vielas de Jerusalém, às margens do Tiberíades. Aqueles sapatos são teologia, são um pedaço da vida do próprio Jesus.
Aqueles sapatos viram Maria e José, sem-abrigo, vagarem pela noite de Belém, Jesus a nascer numa gruta em vez de num palácio, numa manjedoura em vez de num berço de ouro; viram Maria e José, com o Menino, fugirem, refugiados, migrantes, sem papéis, no Egito. Aqueles sapatos pretos e toscos ouviram Jesus dizer que veio para servir e não para ser servido; que quem quiser ser o primeiro seja o último de todos; que ocupássemos o último lugar nos banquetes; que eram felizes os humildes porque haviam de possuir a Terra; que não levássemos connosco ouro, prata ou cobre; que fôssemos como crianças; que os últimos seriam os primeiros e vice-versa; que quem se faz humilde será exaltado e vice-versa; que não nos chamássemos mestres nem doutores. E aqueles sapatos viram o último gesto de Jesus antes do Getsémani, quando, sabendo que Deus Lhe tinha dado todo o poder, exerceu esse poder total ajoelhando-se diante dos discípulos e lavando-lhes os pés. Foi esta a Igreja que Francisco, com os seus sapatos pretos, sempre quis.
Não se esqueça que aqueles sapatos pretos levaram Francisco a uma prisão de menores, onde, na quinta-feira Santa, beijou os pés a jovens muçulmanas; levaram-no a Lampedusa, símbolo cruel de um mar transformado em cemitério perante a indiferença do mundo; levaram-no a rejeitar a pompa solitária do Palácio Apostólico e a escolher um pequeno quarto no acolhimento de Santa Marta, junto com sacerdotes e peregrinos; levaram-no a subir, sozinho, perante o silêncio do mundo durante a pandemia, a Praça de São Pedro à noite, à chuva, e o mundo espantado; levaram-no a visitar os sem-abrigo de Roma, a comer com eles nas igrejas, a entrar em favelas, em acampamentos de refugiados em Lesbos de onde trouxe famílias para Roma; levaram-no às terras mais pobres de África, ao Iraque e às Arábias à procura de diálogo e de paz; levaram-no a abraçar crianças, mendigos, doentes. Sapatos do Grande Peregrino.
E levaram-no à simplicidade em tudo: nem ouro nem balandraus. Nem pompa nem exibição de poder. Era a Igreja de Francisco, pobre com os pobres. Não. Francisco não foi espetáculo: foi coerência total.
Santidade. Não se esqueça que os sapatos pretos de Francisco é que lhe deram a voz que o mundo inteiro escutou com respeito. É que lhe deram a autoridade moral que nenhum líder atual ousou alguma vez ter. Foi com aqueles sapatos que Francisco gritou que “esta economia mata” e todos sabemos, apesar dos assobios para o lado, que é uma verdade insofismável. Com aqueles sapatos falou da alegria do Evangelho, da “casa comum” que precisamos preservar. Com aqueles sapatos foi o grande peregrino da paz, a voz que mais se exaltou contra o fracasso que é a guerra, muitas vezes eivada de um falso patriotismo, mas que serve apenas alguns poderosos com o sangue dos inocentes.
Com aqueles sapatos Francisco lutou para reformar a sua Igreja, a tarefa mais difícil, com mais obstáculos, com cristãos a rezar para que ele morresse antes de destruir a Igreja com as suas atitudes de bondade e misericórdia para com os recasados, os homossexuais, as mulheres, todos os que precisam de justiça e amor. Com aqueles sapatos Francisco fez uma cruzada contra a vergonha silenciosa dos abusos dentro da Igreja, acusando o clericalismo, ou seja, o poder, como o primeiro responsável por esse mal.
Santidade, nós sabemos hoje que muitos jovens querem ser padres muito mais pelo fascínio que uma Igreja resplandecente e autorreferencial lhes dá do que pelo fascínio de um Jesus de sandálias, servindo e amando e tomando o destino dos homens. Saberá, Santidade, que este é um erro que nos leva a um passado que incomoda. Com Francisco, a Igreja tomou um rumo ao qual não poderá jamais renunciar. A Igreja não pode apagar o que Francisco construiu, as portas por ele abertas, o elã, o movimento imparável que terá necessariamente de levar a uma Igreja constantemente em saída. Uma Igreja para todos, todos, todos.
Francisco foi difamado e caluniado. Até depois da morte. Marjorie Taylor Greene, por exemplo, membro do Congresso dos EUA, exultou com a morte do Papa: “O mal está sendo derrotado pela mão de Deus”. Este é o selo definitivo do verdadeiro profeta: o ódio dos corruptos do poder.
Por isso, Santidade, só te peço um pequeníssimo pormenor: os sapatos.