Carta anónima a quem me tramou a vida

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores / JC

Querido Jesus

Escrevo-te estas saudosas linhas a partir da solidão da minha quase velhice, com mais ontem do que amanhã e os cabelos, os que restam, a abandonarem o escuro e a partirem para um cinzento esbranquiçado. A ti, sempre te imaginei como nas pinturas mais belas com que te desenharam, uma barba ligeiramente delicada, olhos grandes e profundos, veste branca com manto vermelho, calma na voz. Com uma particularidade: sempre te imaginei de cabelos desgrenhados. Nunca gostei das imagens que te apresentam com uns cabelos tão penteados que parece que por eles passou uma escova eletrónica do século XXI. Não. Os teus cabelos tinham de ser, necessariamente, selvagens, senão a tua mensagem seria incoerente. Quem não tem onde reclinar a cabeça não se preocupa com um pente.

Passámos uma bela infância juntos. Conheci-te pela boca de minha mãe e de minha avó Olívia, que tanto me dizia da tua bondade, e eu, que te tinha como o meu Cristiano Ronaldo, o meu ídolo, com um poster teu na cabeceira das camas que partilhava com os meus irmãos, nunca mais esquecerei os nossos momentos de pura cumplicidade, quando queria ser por força como tu e decidi, do alto dos meus oito anos, ser padre, ser igual a ti, de preferência com os cabelos desgrenhados, o que, infelizmente, não consegui por ser filho de um barbeiro.

Agora, com a velhice já a morder-me os calcanhares, e com os pontos de interrogação sem pergunta que a minha idade lança ao ar, tenho algumas dúvidas atrevidas para te lançar à cara.

O que é que vieste cá fazer há dois mil anos? Ainda não compreendeste a carga impossível que nos colocaste aos ombros? Será assim tão difícil perceber que quase ninguém consegue perdoar setenta vezes sete, amar os inimigos e dar a outra face como quem joga à marralhinha? Lá tivemos nós de inventar leis e cânones e parágrafos para tornar minimamente vivível o teu radicalismo insano. O teu e nosso Pai criou-nos muito fracos e débeis, e tu devias ter conversado com ele antes de desceres à Terra e nos enfardares com ideais impossíveis de vida.

Porque é que disseste não ao Demónio, quando este te propôs transformar as pedras em pão? Não era só a tua fome que era saciada, era toda a nossa fome! O Demónio propôs-te que aliciasses o povo com o pão. E o povo seguir-te-ia para onde fosses, sem nenhuma dúvida nem reticência, porque o tinhas conquistado pela boca, porque ficariam saciados, refastelados, satisfeitos. Comprarias a lealdade do teu povo com pão. E ele seguir-te-ia fiel e calado: serias o patrão que pagava bem o preço da fidelidade. Mas tu, não! Preferiste que o povo te seguisse em liberdade e o povo detesta a liberdade e prefere mil vezes o pão, e nós é que tivemos de consertar os estragos que fizeste, concedendo que, vá lá, de uma certa forma podemos servir a Deus e ao dinheiro, podemos vestir lautas túnicas e dourar os nossos templos para maior glória tua, que mereces toda a honra de um Pantocrator, apesar de teres andado descalço e de cabelos desgrenhados.

Porque é que não te atiraste do pináculo do Templo, como te tinha proposto o Demónio? Levantavas-te incólume perante o estupor da multidão, que te seguiria de olhos fechados e celebraria sem reticências o teu louvor. Mas tu, não! Preferiste que te seguissem pela fé e não pelo milagre espetacular, sabendo, à partida, que o homem não tem estaleca nem carcaça para aguentar uma fé que não precise de ver para acreditar. Somos todos Tomés, ó Jesus! E agora somos nós, os teus seguidores, a tentar corrigir os teus radicalismos! Inventámos milagres por toda a parte, desde o leite de Nossa Senhora até aos doze santos graais que o mundo tem, desde as três ou quatro toneladas de pedacinhos da tua Cruz até aos milagres mais estapafúrdios para que as pessoas não tenham que sofrer a solidão de uma fé onde tu estás sempre escondido por detrás de todas as dúvidas e desejos. Como é possível ao homem de hoje acreditar sem sinais?

E, já agora, porque é que não te ajoelhaste diante do Mafarrico, prestando-lhe uma sentida homenagem – só isso – e ficarias rei e senhor de todos os reinos da Terra? Terias, aí sim, o poder, a glória, a adoração, o povo prostrado diante de ti, ninguém se perderia, ninguém adoraria outro ninguém, toda a Terra, em uníssono, cantava os teus louvores. Não era esse o teu derradeiro sonho, que todos fôssemos um? Mas tu, não! Outra e outra vez não! E renunciaste apenas por causa de um pormenor: os povos tinham de ser subjugados pela força, pelo poder, pela obediência. Preferiste conquistá-los pelo amor. E, no entanto, as pessoas sabem tudo, menos amar. Não terás sido tu um idealista que errou redondamente no alvo? Todo o líder com dois dedos de testa sabe que o povo gosta de ser subjugado, adora obedecer, desde que, ao fim do dia, tenha o prato de sopa na mesa e tenha quem resolva os seus problemas sem o fardo da liberdade, porque o medo, o medo do desconhecido, o medo da liberdade, o medo de amar são a força que conduz a humanidade. Entregam de mãos abertas a sua liberdade em prol da segurança. Agora a nós, os teus seguidores, cabe a tarefa ingrata de corrigir os teus exageros: criámos estruturas de poder, definimos a obediência como o método mais seguro, mantivemos o povo em santa ignorância porque pensar é perigoso, organizámos penas para os prevaricadores mais corajosos, ancorámos a consciência à lei, de uma forma habilidosíssima, para que os homens fossem escravos pensando que eram livres.

Numa palavra, corrigimos-te. Organizámos uma bela estrutura. És secundário.

E no entanto, querido Jesus, no meio de todas esta dúvidas, dizer que tu és a verdade é a única verdade que sei dizer.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Dorsal Atlântica

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