Por António Pedro Costa

Há livros que nos surpreendem pela forma como nos desarmam. “O Louco de Deus no Fim do Mundo”, editado pela Porto Editora, é um desses casos. Foi-me recomendado por um amigo que se considera “católico não praticante”, expressão tão atual, que mistura fé e ironia com a mesma naturalidade com que se fala do tempo. Contou-me que ficou maravilhado com o livro, que o emocionou e o fez repensar a Igreja e o papel da fé num mundo cada vez mais descrente. Decidi, então, aprofundar o tema, movido pela curiosidade e pela promessa de uma reflexão.
O autor, Javier Cercas, é uma das vozes mais respeitadas da literatura espanhola contemporânea. Ateu assumido e homem de convicções firmes, construiu a sua reputação através da sua escrita, abordando, nas suas ficções, os dilemas da verdade, da mentira e da coragem humana. Contudo, nesta ocasião, Javier Cercas aventurou-se por um território que, à partida, lhe seria alheio, o da fé. Foi convidado pelo Vaticano a acompanhar o Papa Francisco numa viagem à Mongólia e a registar livremente as suas impressões.
A proposta inusitada parecia uma ousadia, atendendo a facto de um escritor ateu ser incumbido de escrever sobre o Chefe da Igreja Católica. Porém, foi precisamente esta distância, este olhar desprovido de reverência, que conferiu à obra a sua riqueza. Javier Cercas abordou o tema não como um crente, mas como um observador atento, guiado pela dúvida e pela curiosidade. O resultado foi um retrato da fé visto de fora, mas narrado com respeito e espanto.
“Invejo os verdadeiros crentes”, confessa Javier Cercas, numa das frases que marcam o tom da obra. A afirmação, uma autêntica confissão, encerra uma humildade desarmante. Não se trata de uma crítica, mas de uma admiração silenciosa, ou seja, um reconhecimento da serenidade que a fé confere aos que a possuem. Para o autor, a crença não é um dogma, mas uma forma de sentido, uma linguagem que escapa à lógica racional. Durante a sua viagem pela Mongólia e pelos corredores do Vaticano, Javier Cercas descobre algo que o desconcerta: uma Igreja que, apesar dos seus dogmas, pecados e contradições, continua a procurar escutar o mundo.
No Vaticano o escritor sentiu o peso denso da história, dos séculos de poder, rituais e hierarquias, mas também uma frescura inesperada. Encontrou pessoas abertas ao diálogo, dispostas a escutar perguntas difíceis e a responder com honestidade.
Entre as figuras que mais o impressionaram destacou-se o Cardeal madeirense Tolentino Mendonça, símbolo vivo da ponte entre teologia e literatura. Nas longas conversas que mantiveram, Javier Cercas percebeu que o problema da Igreja talvez não resida na ausência de fé, mas na dificuldade em comunicá-la sem recorrer à retórica, sem se perder na formalidade das palavras. Compreendeu, então, que a literatura pode desempenhar um papel essencial, como mediadora entre o visível e o invisível, o racional e o transcendente.
Apesar desta imersão no mundo católico, Javier Cercas não se converteu. Permanece fiel ao seu ceticismo, mas admite ter encontrado no Papa Francisco uma luz insuspeitada, descrevendo-o como um missionário, um homem que encarna o lado mais puro, mais luminoso e mais cristão da Igreja. Vê nele prudência, humanidade e uma espiritualidade discreta, feita de gestos mais do que de palavras. O Papa Francisco, aos seus olhos, é um líder que privilegia a proximidade à autoridade, o diálogo à imposição, a ternura à doutrina.
Neste livro, Javier Cercas não busca milagres nem sinais divinos. O que o move é a curiosidade, o desejo de compreender, de se aproximar do mistério sem o pretender dominar. A sua inveja dos crentes não é amarga nem irónica, mas sim contemplativa. É a admiração de quem reconhece que há nos que acreditam uma serenidade que a razão, por mais lúcida que seja, nunca alcançará. Javier Cercas contempla a fé como quem observa uma paisagem longínqua inacessível, mas ao mesmo tempo fascinante.
Num tempo dominado pelo ruído e pela sede de muitos por certezas absolutas, o encontro entre um ateu e um Papa assume o valor simbólico que nos fazem refletir. Representa a possibilidade do diálogo num mundo que deixou de escutar e em última instância, a prova de que a fé, mesmo quando observada à distância, continua a ser a ânsia da busca, de espanto e de mistério. E talvez seja esta a lição maior que Javier Cercas nos deixa, a de que o mistério permanece a última linguagem universal que ainda nos une. Vale a pena uma leitura.