A Cruz da Esperança

Por Carmo Rodeia

Foto: Igreja Açores/GM

“Quando andamos embriagados de altivez nada valemos. Mas, quando pensamos que nada somos, valemos tudo. Porque tu nos criaste. A todos, bons ou maus, do Norte ou do Sul”.

Tropeço nestas palavras do meu conterrâneo padre António Rego, que a partir de Mateus 18,3 começa a dissertar sobre a Quaresma no livro Eterno Agora, cuja leitura gosto sempre de revisitar quando há uma mudança de tempo ou calendário litúrgico, para melhor me situar nos sinais do meu tempo.

Hoje, que começo uma nova aventura de escrita aqui no Ponto SJ, proposta pela Rita Carvalho, a quem agradeço, em Roma no Jubileu dos Comunicadores, não poderia deixar de eleger como primeiro sinal deste tempo favorável que vivemos as Romarias Quaresmais de São Miguel, não apenas por serem uma experiência de fé absolutamente ímpar do ponto de vista pessoal, familiar e comunitário, mas também como expressão de um modelo de fraternidade inesgotável para todos os outros tempos da nossa vida.

Uma das características das Romarias Quaresmais, que já se realizam há mais de 500 anos na maior ilha açoriana, é o facto de grupos de homens (no total serão cerca de 2500 organizados em 55 ranchos) caminharem a pé, do nascer ao por do sol, incessantemente ao longo de toda a ilha, sob a forma de penitência e súplica pela proteção divina, durante uma semana, no tempo da Quaresma. Desde então, a prática consolidou-se como um ato de fé e devoção, desenvolvida hoje já também por mulheres, mas noutro formato mais modesto.

Estes homens, indistintos entre si, sem qualquer diferenciação social ou profissional,  assumem-se como verdadeiros mendigos do perdão para eles e para os outros, oferecendo o seu sacrifício numa atitude reparadora dos pecados do mundo, numa espiritualidade viril que aguenta tudo- o frio, a noite, o vento, as dores, os pés e a intempérie, a privação de alimentos, qualquer que ela seja- e que muscula a alma  para o perdão. Nesta semana em que andam nas estradas, não há diferenças significativas entre eles, antes pelo contrário. Entregam-se à sua indigência e entre eles estabelece-se uma teologia de afetos que supera toda a sua humanidade. Irmanam-se entre si como se essa irmandade fosse o musculo de uma alma encontrada com o criador e por isso a ele configurada no perdão e na ternura, a partir da Cruz. Aliás, a mesma que encabeça a formatura do rancho, na criança que vai à frente e leva um crucifixo a relembrar que é sempre “bendita e louvada a Sagrada Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo!”, expressão dita em toada maior pelos Romeiros de cada vez que chegam a um lugar.

Costuma dizer-se que o Cristianismo é uma religião triste. Entre nós ilhéus, nascidos e adoptados, há mesmo quem faça uma separação de águas entre São Miguel e o resto do arquipélago por causa, justamente, das expressões da piedade popular na maior ilha do arquipélago muito marcadas pela influência franciscana e portanto muito em redor da Cruz e vividas, sobretudo, durante a Quaresma e nas duas principais festas religiosas da ilha: O Senhor Santo Cristo dos Milagres e o Senhor da Pedra, duas representações de Jesus no Pretório, expressas por duas belíssimas esculturas, cujos autores são desconhecidos, que comovem pelo seu realismo facial.

A Cruz que é para nós o sinal maior da vitória do Amor, mas da qual até o diabo foge , obriga-nos a nós, cristãos, a permanecer sempre sob pena de, se a abandonarmos,  estarmos a trair todos os crucificados deste mundo, homens e mulheres, idosos e crianças, que pela guerra, pelo ódio, pela ganância ou pela simples indiferença continuam a ser desprezados e atirados para o lado, ainda que todos os dias nos entrem pela casa dentro quando não pela campainha da porta e nós ignoramos. Às vezes,  até parece que fazem a primeira parte de espetáculos tristemente televisionados dos grandes senhores da guerra que nas cadeiras estufadas do seu poder humilham, ridicularizam e tentam virar as cartas do jogo a seu favor, mesmo quando não têm razão, e jogam com o medo, a ameaça ou o insulto, como se a vida fosse um simples jogo de cartas onde o ás, de forma viciada, sai sempre ao mais forte, ao que tem mais poder. Olhando para esses espetáculos, como antigamente se olhava para o Circo Romano, não podemos deixar de rever a Cruz nem que seja para nos lembrar que os primeiros são nossos irmãos e precisam da nossa atenção e que os segundos, embora preferíssemos que não o fossem, também são e exigem de nós um esforço muito maior de compreensão e compaixão, porque nenhum ser humano é desprezível.

Que volta ao mundo já dei?! É simples, como são simples as romarias. Jesus respondendo aos discípulos diz-nos que qualquer que seja o pecado do mundo a resposta tem de ser o perdão e que devemos perdoar até 70X7 como uma metáfora de um perdão inesgotável.

Quantas vezes sentimos, e experimentamos a vontade de rasgar esta passagem bíblica? Mas com ela, Jesus lança o substrato da humanidade para uma categoria de vida que não tem paralelo na condição humana. Mas que pode ser tentada.

Numa hora de extremos, em que parece que a vida é apenas a preto e branco, em que ou pensas como eu ou estás contra mim, numa polarização ignóbil e vil, em que as regras do jogo só podem ser ditadas por quem acha que tem as cartas, não podemos desistir da Cruz porque é nela que se expressa de forma indelével esta vontade de amar o próximo como irmão.

A um romeiro pede-se uma total fidelidade a Cristo, porque a sua caminhada é de penitência, oração e conversão. Eles procuram seguir os passos de Jesus, vivendo a humildade, o sacrifício e a caridade. Por isso, são todos irmãos.  Tratam-se e respeitam-se como tal.

E aos senhores da guerra, a das armas e a das palavras, o que se lhes há de pedir?

Conversão e arrependimento, abandonando a injustiça e buscando a paz, a justiça e a misericórdia, reconhecendo o sofrimento que causam para que possam reparar  os danos, humildade e serviço , trocando o desejo de domínio pela vocação de servir o bem comum.

Cristo, Rei do Universo, não veio com exércitos nem com armas, mas com o amor que transforma corações.

Aos romeiros, pede-se fidelidade a esse Cristo; aos senhores da guerra, pede-se que abandonem seu caminho e se rendam à verdadeira realeza: s não for possível a do amor que seja a da  paz. Utopia? Prefiro continuar a chamar-lhe profecia.

Boa Quaresma!

(Este texto foi publicado no portal PontoSJ no dia 20 de março)

https://pontosj.pt/opiniao/a-cruz-da-esperanca/

 

 

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