A Europa tem de possuir “estruturas de defesa adequadas” para resistir às ameaças

Bispo das Forças Armadas alerta para a necessidade do mundo ocidental fazer valer os valores da “democracia, da liberdade e da tolerância”

D. Manuel Linda está nos Açores. Presidiu este sábado à ordenação do novo padre da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus.

Em entrevista ao Sítio Igreja Açores falou da importância das Forças Armadas, num contexto de paz, que “não é contraditório com a manutenção de estruturas adequadas que funcionem”; das ameaças à Europa, muitas delas oriundas da própria Europa que “desiste da afirmação dos seus valores” e do Papa Francisco, que todos os dias “nos ensina que não há outra maneira de chegar ao coração das pessoas a não ser pela simpatia” e só através dela podemos operar “a conversão”. Alinha pelo diapasão do Papa de que esta Economia atual “mata”; que é preciso substituir as estruturas que geram riqueza artificial e que o próximo ano Santo da Misericordia será um momento favorável para os cristãos “darem um contributo para a mudança”.

Aos 59 anos, D. Manuel Linda é o Bispo das Forças Armadas e de segurança,  há praticamente dois anos. O novo ordinário castrense foi bispo auxiliar da Diocese de Braga desde junho de 2009, tendo sido ordenado em setembro do mesmo ano, na Catedral de Vila Real, sede da diocese de onde é originário. Veio aos Açores presidir à terceira ordenação realizada na diocese de Angra este ano, a pedido de D. António de Sousa Braga, a que o unem sentimentos de “profunda amizade”.

 

 

Sítio Igreja Açores-  Como está a viver este momento?

D. Manuel Linda- Com emoção. Trabalhei num Seminário e portanto qualquer ordenação, seja de diácono seja de presbítero, é sempre uma enorme emoção. Por outro lado, há um clima de alguma nostalgia e tristeza pelo facto do Senhor Bispo de Angra não estar presente. Agora, é evidente que partilho desta alegria da comunidade local, mas como não tive qualquer responsabilidade na formação deste novo sacerdote, vou colher um fruto para o qual não contribui nada.

 

Sítio Igreja Açores- Vivemos um momento de alguma crise de vocações como toda a gente reconhece, sobretudo num ano em que se tem falado imenso de vida consagrada. Como vê este problema?

D. Manuel Linda- É uma interpelação para nós termos tanta gente a trabalhar na vida eclesial e tão poucas vocações, sobretudo para a vida consagrada. Os padres diocesanos estão a diminuir drasticamente e é legitimo perguntar porque é que as pessoas trabalham tanto na vida pastoral- temos milhares de voluntários na catequese, na liturgia, na ação socio-caritativa- e depois para o ministério da ordenação temos tão poucas vocações?! Julgo que temos de pensar muito. Entretanto também vemos que as congregações e as dioceses que investem na dinâmica pastoral, estão a recolher muitos frutos. Olhe, os dehonianos já tiveram três ordenações, este ano…

 

Sítio Igreja Açores- Então este discurso não é verdadeiro?

D. Manuel Linda- É completamente verdadeiro e há várias causas que o explicam. Não há uma razão única porque se assim fosse o problema era solúvel, mas infelizmente tem a ver com muitos fatores desde a baixa natalidade, à dificuldade de compromisso ou à falta de vivência de valores cristãos pelas famílias. Estes fatores agrupam-se e não dão bons resultados. A nossa cultura hoje é composta por estes filamentos que não dão bons resultados. Mas, estou convencido de que isto será ultrapassado, não com um regresso ao passado. A história também nos ensina que estes regressos não são bons; agora podemos olhar para ele para construir um futuro mais dinâmico. De resto, ao nível da qualidade podemos estar descansados até porque Jesus Cristo nunca negará aquilo que é essencial à sua igreja, sobretudo no que respeita à liturgia e aos sacramentos.

 

Sítio Igreja Açores- Como é que a Igreja pode ultrapassar este “embaraço”?

D. Manuel Linda– Gostava de poder ter uma receita. Infelizmente não tenho.

 

Sítio Igreja Açores- Mas a igreja tem de fazer alguma coisa sob pena dos jovens se alistarem noutras áreas…

D. Manuel Linda– Os jovens são voluntariosos; nós às vezes, sobretudo os media, é que damos pouca conta disso. Já viu a quantidade de jovens que temos a partir em missão todos os anos? Ninguém ouve falar disso. Temos muita gente que vive radicalmente a sua vida religiosa. Gente que se entrega a praticar o bem e nós só ouvimos falar dos jovens que se comprometem com forças do mal. Mas esses jovens têm pouca formação religiosa e por isso também aí o nosso papel é de grande responsabilidade.

 

Sítio Igreja Açores- Estamos a viver um tempo novo, com desafios muito aliciantes do Papa Francisco. A missão e uma igreja missionária é talvez o maior de todos. Como é que vê este desafio?

D. Manuel Linda- É o desafio, sem dúvida. Mas vai demorar muito tempo a ser posto em prática porque a conversão não é imediata. Nós temos vivido um tempo assistencialista, em que o sacerdote administrava os sacramentos e presidia aos ritos. A dado momento vemos que as bases cristãs estavam minadas e descobrimos a catequese, que nesta modalidade não terá mais de século e meio. Mas já foi uma tomada de consciência. Hoje são precisos novos passos. Que têm de envolver, necessariamente, toda a igreja, inclusive os leigos. Esta é a grande orientação de futuro.

 

Sítio Igreja Açores- A igreja tem feito nestes últimos anos uma pastoral de manutenção, esquecendo-se, se calhar, que os tempos já não são os mesmos. Agora insiste-se nesta saída missionária que não sendo nova do ponto de vista evangélico é desafiadora,  porque significa uma mudança. Que instrumentos temos para a pôr em marcha?

D. Manuel Linda- Entre nós, de facto, é fundamentalmente com base no clero que se operam as mudanças religiosas. Mas devemos olhar para outras partes do mundo pois lá não é assim. Veja-se África ou a Ásia, onde os leigos têm um papel fundamental na conversão. Infelizmente na Europa ainda estamos muito centrados na figura do padre e eu não digo que ele não seja importante como centro mental e afetivo. Agora, é preciso reformular esta ideia, e os padres e os bispos têm um papel fundamental. Também aqui a mudança não se operará de um momento para outro.

 

Sítio Igreja Açores- E em dioceses onde ainda não há escassez, por assim dizer, de clero, será ainda mais difícil…

D. Manuel Linda- Sem dúvida. Mas também é bom dizer que a dinâmica missionária da igreja não depende só dos padres e muito menos é condicionada por haver mais padres. É natural que onde existem muitos sacerdotes, eles como técnicos do sagrado, por assim dizer, tendam a concentrar mais coisas e isso dificulte a tal dinâmica porque se ocupam de tarefas que não deveriam ser desempenhadas por eles.

 

Sítio Igreja Açores- Estamos prestes a iniciar uma nova assembleia do Sínodo da Família, agendada para outubro. É um desafio. Que expetativas tem?

D. Manuel Linda- O Sínodo não decide nada. Quem decide é Pedro e neste momento Pedro chama-se Francisco. Julgo que a assembleia vai decorrer como a primeira extraordinária,  num clima de grande liberdade. O Papa tem feito esse apelo: digam o que pensam e ao que vêm. Já há muitas achegas e todo o material chegará às mãos do Papa e, julgo que as mudanças que se operarem serão sobretudo do ponto de vista pastoral. Eu vou dar um exemplo, que não passa disso e nem tem a ver com a minha opinião pessoal: hoje é um problema para a maioria dos sacerdotes a admissão de determinados padrinhos para o sacramento do batismo de pessoas que não estão numa situação regular aos olhos da igreja. Pergunto: é dogma da nossa fé que para haver batismos tem de haver padrinhos? É claro que não é. Aliás num dado momento histórico da nossa igreja indicou-se um tutor do progresso espiritual que se chamou padrinho. Essa função foi desvalorizada e hoje o padrinho é aquele que dá as prendas e significa um alargamento da família. Ora se o Papa vier a dizer assim: foi muito bom mas hoje a função do padrinho complica mais do que ajuda, por isso vamos acabar com a figura. Onde está a problemática? Em lado nenhum. Bem pelo contrário. O que importa é que a comunidade cristã se responsabilize pela dimensão, crescimento e aprofundamento da fé daquele que é batizado. Agora que o faça com um padrinho ou por outra estrutura qualquer é indiferente.

 

Sítio Igreja Açores- O mesmo acontece com outros exemplos: a comunhão dos recasados…

D. Manuel Linda- A doutrina que temos hoje e que praticamos não levanta qualquer duvida ao facto dessas pessoas fazerem parte da igreja. O único problema que se coloca é o do acesso à comunhão. Mas há todo um acompanhamento sacramental para que Jesus Cristo viva neles e eles vivam em comunhão com Jesus Cristo. Continuam a ser filhos da igreja e a participar nela enquanto membros. A situação irregular à luz da igreja não os afasta radicalmente dessa igreja que os acolhe como filhos. De resto, se olharmos para uma assembleia dominical, há outras pessoas que estão em situação dita regular e também não acedem ao sacramento da comunhão. Julgo que estamos a criar um falso problema e uma falsa discussão que não é o essencial. Ou seja, seria importante participar na comunhão do corpo e sangue de cristo, mas mais importante que isso é participar na liturgia dominical, ser membro ativo da igreja, comprometido e isso nunca é negado em qualquer circunstância.

 

Sítio Igreja Açores- As expetativas que tem é que poderemos ter respostas novas do ponto de vista pastoral…

D. Manuel Linda- A igreja está no tempo para fermentar as mentalidades do tempo e não para dar respostas no tempo. Evidentemente que as situações maioritariamente vividas são um repto, são um desafio e nós devemos procurar respostas para essas situações que se apresentam no tempo. É essa tentativa que estamos a desenvolver.

 

Sítio Igreja Açores- O Papa Francisco tem uma tarefa árdua entre mãos. Que avaliação faz destes dois anos de pontificado?

D. Manuel Linda- De zero a 100 daria 200. É inegável que embora haja para aí grupos retrógrados que puxam para trás, e que querem de alguma maneira conotar o Papa com um sector provinciano da América Latina, estamos diante de um homem providencial, que diariamente nos ensina uma coisa que para mim é fundamental: não há outra chave para entrar no coração humano que não seja pela da simpatia. Não é pela lei, mesmo a canónica, não é pela ameaça do inferno ou por um pregação fria do dogma que nós convertemos alguém. Só o fazemos através da simpatia, que é a verdadeira mensagem de Jesus. E isso é doutrina. A forma simpática que Francisco tem de estar junto das pessoas tem sido fundamental;  é o maior ensinamento que nos pode fazer.

 

Sítio Igreja Açores- Recentrando a mensagem naquilo que é essencial: Jesus Cristo…

D. Manuel Linda– Evidente…Voltamos a encontrar alguém que pelas suas atitudes encarna a forma genuína do Rabi da Galileia, que não afastava ninguém, que se dava com o justo e o pecador, numa atenção especial a este último. Veja o lava pés a criminosos numa prisão de Roma ou a meninas muçulmanas… são gestos cheios de significado porque mimetizam o comportamento de Jesus. Então, poderia dizer que vemos as atitudes físicas de Jesus neste Papa e isso é absolutamente doutrinal.

 

Sítio Igreja Açores- A Igreja é chamada no próximo ano, justamente, ao tema da Misericórdia. O que podemos esperar?

D. Manuel Linda– O tema da Misericórdia lembra-nos a natureza dogmática da nossa fé, pois nós fomos redimidos pelo amor de Deus visível na morte de Jesus na cruz; lembra-nos a dinâmica pastoral naquilo que estávamos a falar há pouco de que não se entra no coração das pessoas sem simpatia, e a misericórdia é uma empatia simpática com os outros e lembra-nos que a fé assenta em três dinâmicas: a evangelização, a sacramentalização e a caridade. E esta abre-se à preocupação com o outro que se materializa nas obras materiais e espirituais. Ora, a igreja que tanto tem feito e continua a fazer neste campo tem que se sentir ainda mais acalentada, mostrando que aqui repousa o seu centro.

 

Sítio Igreja Açores- A Misericórdia assenta em valores que afetam algumas práticas e conceitos do mundo atual…

D. Manuel Linda- Que o Papa não se cansa de denunciar, felizmente. Por exemplo esta economia que mata. O amor gratuito tem de substituir algumas das estruturas que os homens encontraram para gerar riqueza artificial e só se rabalharmos nesse sentido estaremos a dar um contributo cristão para a mudança. A misericórdia impele-nos a isso.

 

Sítio Igreja Açores- Falou no mundo, é uma ideia muito abrangente. Basta olharmos aqui para o nosso lado, o continente onde vivemos onde há quase que uma negação de tudo isso. Além das questões financeiras, há questões humanitárias, de segurança…

D. Manuel Linda- Sabe, nem o mundo nem a história são linhas retas. Não sou pessimista ao ponto de dizer que a Europa se está a desfazer ou sequer a desviar daquilo que foi o centro da sua construção. Mas esperava que a Europa rumasse num sentido mais humanista do que tem seguido até agora. Veja-se o exemplo concreto da construção do muro na Hungria, que representa um forte retrocesso em termos de valores…

 

Sítio Igreja Açores- Até pode funcionar como uma metáfora para o fechamento das fronteiras europeias…como se as trancas à porta fossem uteis…

D. Manuel Linda- Não obstante, também não sejamos pessimistas. A Europa continua a ser a parte do mundo que mais dedica o seu esforço ao desenvolvimento do mundo. Bem sei que às vezes com modelos pré concebidos e assentes em teorias que são discutíveis. Apesar disso, faz muito mais que outros países, até com mais posses. Por isso, não posso concordar com a ideia que seja uma Europa fechada em si; agora poderíamos dar um exemplo mais convincente e não estamos a dar. Diria em síntese que andamos a passo de caracol. Estas questões da Grécia não vão ser o futuro da Europa e eu espero que as questões não continuem a ser vistas só pela lupa financeira.

 

Sítio Igreja Açores- Mas são os interesses económicos que ditam a geopolítica. Veja o caso da defesa europeia. Temos um barril de pólvora à porta da Europa, na guerra entre a Ucrânia e a Russia e a Europa é incapaz de resolver o conflito…a Guerra na Síria ou no Norte de África por causa do avanço do Estado Islâmico está a empurrar gente para o coração da Europa e nós não sabemos o que fazer com essas pessoas…Que diálogo pode ser desenvolvido?

D. Manuel Linda– Três ideias muito breves. A ideia da aldeia global, do comunicólogo canadiano Marshall Mcluhan é, porventura, já uma realidade. Passar dos nossos nacionalismos à mundi vivência de uma aldeia global reclama-se neste momento; não é fácil mas é imperioso.

Em segundo lugar, os que nos chegam têm de merecer uma política mais clara que assente no acolhimento, porque são pessoas que merecem ser tratadas como tal. Veja, são pessoas que não têm nada a perder e nas suas lógicas perderem a vida na guerra, à fome na sua terra ou no mediterrâneo, é a mesma coisa. Por isso arriscam tudo. Nós temos que ser capazes de combater esta ideia terrível; temos de ser capazes de os acolher e de lhes dar uma resposta. Desde logo contribuindo para o restabelecimento da paz nos seus países de origem, e por outro lado, arranjando estruturas de integração, salvaguardando naturalmente a nossa integridade. A Europa também não pode acolher toda a gente.

Finalmente, nós ainda não atingimos o reino de Deus…onde há justiça, amor, paz…

 

Sítio Igreja Açores- Mas há momentos da história, como este que vivemos, que pelo contrário nos mostra que nos estamos a afastar dele…

D. Manuel Linda- Novamente não quero ser pessimista. Este mundo é constituído por violência e o segredo está em fazer vingar valores da liberdade, da tolerância e da democracia, que são valores caros e muito fortes à nossa civilização. Sendo valores difíceis de pôr em marcha temos de encontrar um ponto de equilíbrio entre ser amigo da paz e encontrar as condições para a segurança. Evidentemente que as forças de ordem são exigidas neste momento histórico sob pena de não conseguirmos mantê-la. Por isso, quando se vê que a Europa, talvez baseada num certo idealismo, desinvestiu na sua segurança, hoje percebemos que há uma fatura a pagar.

 

Sítio Igreja Açores- E nem tinha razões para isso porque a paz já tinha sido quebrada na década de 90, com os conflitos nos Balcãs…

D. Manuel Linda- Pois, esquecemo-nos de ler a História. É importante dizer, sem complexos, porque não sou um falcão a defender o rearmamento, mas é preciso lembrar, com muito realismo, que este desinvestimento nas forças armadas, cá como noutros países, tem consequências. Repare, este ano só 1,1% do orçamento de Estado se destinou à defesa. Espera-se que este ano ainda possa ser reduzido. Há, se calhar pessoas que olham para este número e dizem que é excessivo, mas não é porque é o mínimo dos mínimos para garantir que as estruturas funcionem. As nossas Forças Armadas estão integradas em estruturas internacionais e também contribuem para este esforço de paz. Para se garantir a paz é preciso, justamente, ter meios de defesa.

Resumindo, não defendo um rearmamento mas sou apologista do principio da realidade e hoje, quando olhamos para o mundo e vemos o que se passa, alguém duvidará que o Califado que está a avançar, que historicamente já dominou a Península Ibérica, se tivesse condições não se tinha expandido para cá?

Se não houvesse dois exércitos- o espanhol e o português- eles não teriam já tentado entrar na Europa pelo Mediterrâneo? Eu e outros cristãos não teríamos já a nossa cabeça a prémio?

 

Sítio Igreja Açores- São desafios…

D. Manuel Linda- E há que olhar para eles com muito realismo porque o problema não é o diálogo intercultural ou a integração de pessoas com credos e com culturas e hábitos diferentes. O desafio que se nos coloca a nós cristãos é sermos capazes de afirmar que somos cristãos e não abdicarmos das nossas convicções e princípios em nome de qualquer coisa que se chama relativização. A secularização é o nosso maior inimigo porque nos leva a demitir-nos daquilo que somos, da nossa matri

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