A medida da caridade

Por Carmo Rodeia

Acabamos de dar as boas vindas ao novo bispo de Angra.

A festa foi bonita e participada de forma entusiasmada, como há muito não se via, apesar de se intuir um ou outro amuo pouco relevante e que há de converte-se .

A vida é assim mesmo. A minha avó costumava dizer que a mudança provocava entusiasmo e, por isso, era sempre boa, mais que não fosse porque enquanto a vivíamos estávamos entretidos e não pensávamos em mais nada. Tinha razão. Mas a convicção dela era mais séria e profunda. Dizia ela que a mudança nos desafiava porque nos obrigava a calçar outros sapatos e a vestir outras roupas e por isso, tínhamos sempre de sair de onde estávamos. Ela andava sempre a mudar de casa pois repartia os dias e os meses pelas casas dos filhos, para ser cuidada e acompanhada.

Há em cada ser humano, em cada um de nós, um desejo natural em viver situações agradáveis e de escapar a todas aquelas que, de alguma forma, acarretam sofrimento. Como se cada célula do nosso ser reclamasse o direito a uma vida prenhe de sentido. É natural, todos procurarmos escolher caminhos mais fáceis e aprazíveis, evitando as veredas estreitas e perigosas. Nem sempre conseguimos, é certo, e muitas vezes por nossa culpa ou pela ação de outros, fazemos o que não queremos, omitimos o que não desejávamos e falhamos quando não era previsível. Somos de carne e osso, somos humanos e por isso temos, cada um de nós, as nossas fragilidades. Reconhecê-lo tem de ser um caminho, não para nos desculparmos mas para nos convertermos e sermos mais ao jeito de Jesus.

Etty Hillesum no seu diário, a 12 de julho de 1942, numa das suas mais bonitas e profundas “orações”, falava assim com Deus: “Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus”.

A notícia da nomeação do Senhor D. Armando Esteves Domingues foi uma boa notícia. O Papa deu-nos um pastor ao fim de um ano e isso, por si só, é motivo de festa. O bispo não é o tudo da diocese, mas é com ele que fazemos o todo desta Igreja local. Depois vieram as palavras, as ditas e as subentendidas, e todas elas fizeram sentido: diálogo, conhecimento, caminho, escuta, abertura, inclusão, periferias. missão… Palavras que rimam com uma igreja com todos e para todos. Que segunda boa notícia!

Num mundo como o de hoje, tão emancipado de Deus, onde parece que Ele nunca é preciso, temos tanto a fazer na vida de todos os dias.

Assinalam-se este ano os cem anos do nascimento de Eugénio de Andrade, talvez um dos poetas portugueses do século XX mais conhecidos e citados. Às vezes sinto que nos falta alguma poesia na vida e nas relações humanas. Talvez tudo fosse mais fácil.

“É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras”.

Agora que a “festa” acabou, quando “Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer”.

A Igreja e os cristãos têm como missão manter-se vigilantes, denunciar e agir, ajudando Deus a realizar-se com os homens, construindo novos tempos, onde mesmo que Ele esteja distante, porque não se vai à missa, porque não se reza todos os dias, porque não se pertence a nenhum movimento, a Sua Palavra seja relevante e tida em conta. Sobretudo que faça a diferença e possa erguer uma nova vida. Só não colheremos aquilo que não dermos. É a minha convicção… Sobretudo depois dos dias da festa.

Scroll to Top