A mesma bússola, quase sempre esquecida

Por Carmo Rodeia

Quando o Papa Paulo VI definiu o primeiro dia do ano como o Dia Mundial da Paz e o assinalou em janeiro de 1967, o ano em que nasci, sabia bem a empreitada que nos estava a legar. Duas guerras mundiais depois, e com o crescimento da ameaça nuclear, o Papa definiu o desenvolvimento como o único caminho para a Paz.

Hoje, 54 anos depois, estamos mais desiguais que nunca. Do ponto de vista do desenvolvimento, da economia, do conhecimento cientifico e até politicamente falando, sem esquecer a questão social. Divididos por um fosso social gritante, agravado pela pandemia, também a luta contra ela marca bem as posições em que nos encontramos.

No momento em que a Vacina contra o Sars Cov 2 chega ao primeiro mundo, continuam a ignorar-se os relatos sobre qual a verdadeira situação da pandemia em África ou na América Latina, excetuando as parangonas que só nos envergonham, como seja o negacionismo do Chefe de Estado brasileiro ou as dificuldades em combater o vírus noutros países da América Latina, que já não aceitam doentes nos hospitais e, quem luta por oxigénio tem que o fazer no mercado negro, a preços absolutamente escandalosos.

Confesso que estou um pouco cansada da pandemia, das notícias sobre os números da pandemia mas, sobretudo, estou incomodada com a falta delas à cerca do que se passa nos países menos desenvolvidos e que irão sofrer mais. Como estão os campos de refugiados na Europa ou em África?

Como estão os países africanos ou os do Médio Oriente a lidar com esta situação?

Na sua recente mensagem Urbi et Orbi de Natal, o Papa disse que, para que as vacinas “possam iluminar e dar esperança ao mundo inteiro, devem ser colocadas à disposição de todos… especialmente dos mais vulneráveis e necessitados em todas as regiões da Terra”.  Estes princípios de justiça, solidariedade e inclusão devem estar na base de cada passo específico e concreto de resposta à pandemia.

Por isso, tendo em conta a sua função, é bastante oportuno interpretar a vacina como um bem ao qual todos tenham acesso, sem discriminações, de acordo com o princípio do destino universal dos bens, referido também pelo Papa Francisco, como sublinha o documento da Comissão Vaticana covid-19 em colaboração com a Academia Pontifícia para a Vida.

“Não podemos deixar que nos vença o vírus do individualismo radical, tornando-nos indiferentes ao sofrimento doutros irmãos e irmãs…, colocando as leis do mercado e das patentes de invenção acima das leis do amor e da saúde da humanidade”.

Por outro lado, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2021, o Papa Francisco pediu que parássemos e refletíssemos sobre que caminho queremos percorrer na busca da paz sublinhando que qualquer que seja esse caminho, deve ter como bússola “uma cultura do cuidado”.

Depois de um ano em que a pandemia de covid-19 agravou fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, Francisco diz ser “doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganhem novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição”.

Para o Papa Francisco é óbvio que o ano de 2020 nos terá ensinado “a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação”, uma “vocação” que o ser humano herdou de Deus, apresentado na Bíblia “como Aquele que cuida das suas criaturas”, e que constituiu, desde logo, “o núcleo do serviço de caridade da Igreja primitiva”.

Por isso, apela aos “responsáveis das organizações internacionais e dos Governos, dos mundos económico e científico, da comunicação social e das instituições educativas” para que usem a “bússola” de princípios que têm por base essa vocação, como sejam “a promoção da dignidade da pessoa humana, a solidariedade com os pobres e indefesos, a solicitude pelo bem comum e a salvaguarda da criação”.

Nesta fase do caminho, como lembra o Papa é necessário descobrir como “converter o nosso coração e mudar a nossa mentalidade para procurar verdadeiramente a paz na solidariedade e na fraternidade”.

A atitude que somos chamados a assumir, como sociedade, é esta cultura do cuidado: um cuidado dirigido à pessoa, na sua individualidade; um cuidado dirigido ao outro, enquanto tu, como membros de uma comunidade e um cuidado que é necessário orientar para o mundo.

Será que a bússola nos vai orientar desta vez?

Bom ano!

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