A minha avó havia de gostar

Por Carmo Rodeia

A Igreja celebra a memória de Santa Ana e São Joaquim, pais da Virgem Maria, segundo os evangelhos apócrifos. Sendo pais de Maria, são avós de Jesus e é por essa razão que hoje celebramos, em Portugal, o dia dos avós. É uma ocasião para rezar por eles. Já não tenho nenhum vivo, embora as duas matriarcas- paterna e materna- tenham tido uma longa vida. Foram absolutamente essenciais para o que sou hoje e tive a felicidade de conviver de perto, até muito tarde, já com filhos, com uma delas.

A avó Branquinha- Branca de nome próprio-, como o avô Francisco- carinhosamente chamado por avô Chico- tinham um carinho especial por mim, a quem chamavam ternurentamente “a nossa andorinha”. Fui anos a fio a única neta, pois só tenho irmãos mais velhos. Só depois veio a Teresa, a prima, que vivia em Lisboa e só vinha ao Alentejo em tempo de Natal. Por isso, continuei a ser a única. Aliás, dada a diferença de idades entre mim e os meus irmãos costumava, acho que ainda costumo, dizer que sou filha única mais dois. Como já perceberam fui sempre muito apaparicada.

A casa dos avós, paredes meias com a escola, primeiro a primária e depois a secundária, facilitavam a proximidade. A minha e a dos meus colegas e sempre que havia farra à noite toda a gente dormia em casa da avó da Carmo, que era enorme. Aqui aprendi quase tudo: as primeiras palavras, as primeiras letras, os primeiros cozinhados- o cheiro da casa da avó Branquinha era único, sobretudo nas datas festivas. Há bolos que ainda hoje, seguindo a mesma receita não têm nem o mesmo sabor nem o mesmo cheiro…Os primeiros bordados e costuras para as bonecas;  as primeiras orações; a rezar o terço de Fátima. Foi com ela que vim pela primeira vez a Fátima, tinha para aí uns cinco anos, na altura em que entrei para o primeiro ano. Passava sempre uma semana em São Pedro do Sul com os avós. Não que não fosse mimada em casa, mas porque os avós me davam toda atenção do mundo, era bom estar com eles.

Minha mãe tem 10 netos. Trabalhou até tarde mas logo que se reformou passava grandes temporadas nos Açores com os meus filhos. A avó Cacá perdia-se em brincadeiras com os netos, coisa que raramente fazia connosco, e embora a sua principal preocupação fosse sempre com a comida- mal chegavam a primeira coisa que perguntava era: o que vos apetece para o lanche- na verdade os meus filhos guardam por ela um carinho que nem a distância de 1600 quilómetros fez por momentos arrefecer. Estar em casa da Cácá era o mesmo que estar em casa.

Os avós são mestres desta arte esplêndida de ser, transformando cada encontro quotidiano num dia de festa, sem a pressa dos pais e com o olhar terno de quem gosta duas vezes, acho que é assim que os avós se consideram: pais duas vezes. Eles caminham ao nosso lado sem pressa porque sabem que a pressa não só não é boa companhia como sabem que o tempo para eles é mais curto e por isso fazem suas as nossas esperanças.

Tal como eu, os meus filhos tiveram a graça da presença dos avós. Cultivaram com o avô paterno- o Toni- uma relação de mão cheia. Não havia para eles companheiro maior de todas as brincadeiras. Quando lhes demos a notícia do falecimento do avô, o único que conheceram, estavam justamente em casa de minha mãe, no dia 7 de julho, de férias, no continente. Vinham sempre antes de nós. O Francisco, mais velho, ficou mudo e o João, o do meio só me perguntou: e agora, com quem vou para a selva. A selva era uma aventura que ambos foram tecendo, com direito a mochila e a artefactos para enfrentar os leões, os tigres e os `lilifantes´, que haveriam de se atravessar no caminho deles. Chegaram mesmo a construir uma espada de madeira. Juntos equiparam mochilas para levar para a selva. Horas de conversa detalhada sobre como fazer, como ir, como viver na selva. Uma aventura que o João ainda hoje contará ao pormenor.

As conversas entre o Toni o Francisco, o João e o Gonçalo hão de ficar entre eles, como as minhas ficaram entre mim e os meus avós, porque os avós têm uma sabedoria que se expressa por histórias calorosas e não por conceitos. Têm uma memória que nos parece inesgotável, cheia de aventuras, de miudezas e de detalhes que nos divertem. Como se fossem baús carregados de objetos (alguns incompreensíveis) que nos põem a sonhar. Os seus conselhos amparam-nos…Sim, acho que acima de tudo é isso: Amparo!

Orgulham-se de brincadeiras parvas e repetem as graças dos netos aos amigos como se fossem as coisas mais importantes do mundo.

Hoje, os meus filhos, já só têm uma avó viva, a minha mãe. Nutrem por ela um carinho e uma atenção que, nós filhos, por vezes não temos exasperados no desconforto de termos diante de nós uma pessoa que conhecemos na plenitude da vida e que hoje é totalmente diferente, confinada na sua terrível doença. É curioso porque a minha mãe tem alturas que não me conhece mas nunca deixou de reconhecer um neto sempre que ele se aproxima.

Os avós salvam-nos e nós conseguiremos salvá-los?

Ainda gostava de ter tempo para ser avó a tempo inteiro.

Scroll to Top