“A missão é um grito de alma que nos leva em direção ao outro”

Pedro Coutinho, sacerdote missionário dehoniano, falou ao Portal da Diocese, na primeira pessoa, das experiências em Madagáscar e Goa. Hoje está no Livramento, em Ponta Delgada e essa é a sua nova missão.

Portal da Diocese (PD)- Onde e quando foi a primeira missão?

Pe Pedro Coutinho (PC)– Dia 31 Janeiro de 1992 parti para Madagáscar. Era dia de S. João Bosco. Parti de Paris para Antananarivo com escala nas Ilhas Seischels. Mal entrei no avião passava uma música de Enzo Morricone do filme “A Missão”. O meu destino era Ifanadiana, uma missão na floresta tropical húmida, um clima que no passado dizimou centenas de missionários por causa das febres e das doenças tropicais, entre as quais a lepra e a peste bubónica.

 

PD- Quando partiu sentiu que tinha os atributos para ser um missionário?

DR

Pe PC– O primeiro atributo é sentir-se bem na sua pele: chamado por Deus e apaixonado por Cristo, por Ele enviado aos mais pobres para ser um deles. É preciso ser um homem de fé, um homem de fronteira, desinstalado do já adquirido. Um missionário deve ter a esperança do semeador que nunca verá os frutos da terra que amanhou e da semente que lançou, deve ser paciente e humilde. Deve aceitar avançar por tentativas num terreno que está a aprender a conhecer, numa cultura que não é a sua. Precisa de ter a paciência do cientista no seu laboratório e a audácia do explorador que ensaia caminhos novos, a ousadia do poeta com sonhos proibidos e a humildade do santo que nada dá por adquirido. Sobretudo, deve ser um irmão com os pobres para deles colher a riqueza. Viver com eles despido do que é seu para se revestir da novidade de uma cultura. O missionário deve amar as pessoas e as culturas e adotá-las como suas sem as julgar e no belo e sublime descobrir o tesouro escondido dos traços de Deus.

O missionário deve saber trabalhar em comunidade.

Ninguém é forte sozinho! Precisamos de trabalhar em rede, de contar com os outros, fazer planos, saber deixar-se por em questão e partilhar a vida.

 

PD- Gostaria que partilhasse alguns momentos da sua larga experiência como missionário, sobretudo, em contextos difíceis.

Pe PC- Custou-me muito no começo. Como faria eu para viver na sujidade, sem casa de banho, a ir lavar-me ao rio como toda a gente, a dormir numa tábua, sem travesseiro, sem o mínimo de conforto, suportar milhões de pulgas e de mosquitos?! Achei duro viver sem eletricidade, telefone, computador, a 80 km do hospital mais próximo mas nunca pensei muito nisso porque vivia feliz, sempre fiz o que gostava de fazer.

Custou-me muito viver em clima de guerra civil, apertado no meio de fações políticas, no reino do diabo: malvadez e ódio. Optei pela não-violência ativa e ensinei os meus paroquianos a não ripostar com a violência. Pus-me no meio da contenda para evitar perda de vidas. Consegui,  mas se estou vivo hoje é um puro milagre que atribuo à proteção de Deus e à sua Providência.

Um momento muito difícil foi quando era capelão na universidade de Taná e na Índia. Toquei no fundo da miséria humana: as pessoas que se vendem e são vendidas, que se traficam e desprezam como objetos. Revoltou-me a riqueza extrema de poucos construída sobre o sangue e o suor dos pobres.

PD- O Papa Francisco convida-nos a levar o evangelho para além das nossas próprias fronteiras, em busca das periferias. Hoje as periferias não são só geográficas, são também sociais. Que papel devem ter os missionários hoje?

Pe PC– Duas palavras: viver a fé e testemunhar.

Hoje a missão é global. Tanto se passa no coração das zonas industriais da China ou da Índia, em África, como já aqui. Ela começa sempre pelos pobres, excluídos e pelos mais frágeis. Os mais pobres de todos tanto são os que vivem despojados de tudo como os que só têm dinheiro ou para ele vivem, os escravos do seu trabalho os pobres de família, de relação de humanidade.

A missão é de cada crente. Cada um dos discípulos de Cristo tem um papel primordial pelo testemunho e pela Palavra.

Os missionários de hoje são sempre os samaritanos que partem ao encontro do irmão caído. A missão é um grito de alma que nos leva em direção ao outro. A melhor missão é a caridade, é vivermos reconciliados, ter atitudes de tolerância, respeito, consideração positiva da outra pessoa. Depois virá o anúncio da Palavra, o conhecimento e o caminho para o Cristo e os valores do Evangelho que muitas vezes se escondem sob atitudes de vida, até de outros credos e confissões que usam a linguagem do amor ao próximo. E basta.

 

PDDepois do Concílio Vaticano II houve uma mudança significativa na atitude dos missionários. Em que medida isso contribuiu para sedimentar o seu trabalho?

Pe PC– Foi fantástica a consideração positiva das culturas e dos costumes dos povos. A inculturação abriu-nos os horizontes para as riquezas escondidas em formas diferentes de viver a nossa humanidade. Essa diversidade de valores e culturas virá enriquecer a própria Igreja e contribuir para aumentar o espólio da nossa fé que não cristaliza em formas, em ritos, épocas e mentalidades.

O Concílio abrigou-nos a ir às fontes e a despojar a fé das marcas históricas para a tornar acessível e pura aos simples.

Depois vieram aspetos muito belos como a promoção humana, nas suas mais variadas formas, que se tornaram meios muito importantes para evangelizar.

A missão passou a ser de todos, padres, religiosos e leigos. O envolvimento dos leigos é uma componente humanizante mais que humanitária porque promove a pessoa em todas as dimensões e também aquela que muitos esquecem: a dimensão espiritual.

DR

A partilha de dons das igrejas é um outro aspeto muito positivo. Sem ela não teríamos podido construir centenas de escolas, dispensários, estradas, pontes, dispensários, poços, carpintarias, criação de gado, universidades. Esta abertura a tantas atividades sociais, que se tornaram um meio potentíssimo de anunciar o Evangelho, foi decisiva. Foi durante o mandato de João Paulo II que mais crescemos como Igreja em toda a nossa história e passamos de uns 800 milhões a 1.2 M milhões de católicos sobretudo na África e no sul da Ásia.

 

PD- Em dia Mundial das Missões que mensagem deixa aos cristãos?

Pe PC– Amigo cristão: se tens Cristo considera-te a pessoa mais feliz sobre a face da terra. Sê fiel à sua pessoa e cultiva com Ele uma grande amizade. Tu também tens uma missão: não guardes para ti o tesouro maravilhoso da vida plena que possuis. Que ninguém feche essa fonte que tens em ti: nem a indiferença nem o medo, nem o comodismo. Escolhe a tua própria missão. Pode ser na tua própria família: reconciliar, perdoar, desculpar dialogar. Pode ser fora dela: fazer voluntariado, servir numa associação, nos grupos eclesiais.

Escolhe tu a tua própria missão, é urgente que tenhas uma: Podes dar simplesmente a tua atenção a um idoso, a um doente um toxicómano. Começa por purificar o teu olhar do desprezo. Fala mais com as pessoas e foge da solidão do outro para ser encontro. Aprende a arte de ser o próximo do que vive a teu lado. Verás que não precisas de ir para o Bangladesh para salvar o mundo, nem tens de te alistar na liga protetora das baleias para ser condecorado por salvar o planeta. Terás sempre uma missão urgente: a de ganhar os outros por um simples sorriso porque és enviado pelo Senhor.

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