A preço de saldo

 

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Por Carmo Rodeia

A liturgia deste domingo falou-nos do projecto de salvação proposto por Jesus, lembrando-nos que Deus pensa em cada um em particular, independentemente da cor da pele, do sexo, das habilitações literárias, da relevância social ou do local de nascimento.

É muito reconfortante este projecto: sabermos que mais do que um julgamento há uma consideração de Deus por cada um de nós e por cada circunstância da nossa vida. O amor e a liberdade do amor é sempre a medida máxima que Deus nos dá.

Foi isto que o Papa Francisco veio lembrar na Jornada Mundial da Juventude quando se dirigiu, sobretudo aos jovens, dizendo-lhes que Deus os ama tal qual como eles são e não como gostaria que fossem. Disse-o aos jovens mas lembrou-nos também aos mais velhos o que está em causa.

É muito interessante porque fica a sensação de que o Papa Francisco veio como que cristianizar a Igreja, tantas vezes rigidamente submetida ao espartilho da lei canónica, tantas vezes vinculado a um certo virtuosismo que estimula comportamentos, muitas vezes desfasados entre o que se anuncia e o que se vive realmente. E quando anunciamos este projecto de salvação, este reino de amor, não podemos ter duas “caras”, isto é, amamos, mas… .O Amor nunca tem “mas”! A única medida do amor é amar sem medida, como dizia Santo Agostinho.

Hoje vivemos um mundo de contradições. A comunicação, e as tecnologias que a suportam, vieram alargar-nos horizontes, abrindo-nos um mundo inteiro de conhecimento mútuo. Mas, por outro lado, desenvolveram também o isolamento, o individualismo e a autorreferencialidade, que muitas vezes pode ser partilhada na bolha que criamos ou a que pertencemos, levando-nos a deixar de parte quem é diferente ou quem pensa de outra forma.

A insistência do Papa na inclusão de todos, tal como são, tem de nos fazer pensar se daí não decorre uma reflexão sobre a necessidade de alterarmos algumas das estruturas eclesiais e a sua forma de atuação.

Por exemplo, que sentido poderia ter dar lugar a todos na Igreja ao mesmo tempo que os crentes são rotulados segundo o seu grau de adequação à lei canónica? O que significa realmente abrir as portas a todos se ao mesmo tempo que se lhes fecha a porta da comunhão eucarística ou de qualquer dos outros sacramentos? Porque é que há batizados que podem aceder a determinados sacramentos e outros não? Porque é que que a orientação sexual de um cristão pode levar à sua não inclusão na Igreja?

Alguns terão a tentação de responder a estas interrogações alegando que a pertença à Igreja não pode ser oferecida a “preço de saldo”. Mas não é exatamente a “preço de saldo” que Deus nos ama e nos oferece a sua salvação? Não é inteiramente gratuito esse dom imerecido?

Por vezes, sinto que nos relacionamos com Deus como se fossemos iguais a Ele; às vezes, até, como se fossemos melhores do que Ele e depois, por qualquer razão humana, achamos que estamos mandatados por Ele para julgarmos os outros, como naquela expressão simplista e popular que tantos de nós materializamos, em tantos momentos da nossa vida, que é sermos “mais papistas que o papa”. Como naquelas ocasiões em que queremos dizer alguma coisa e não temos coagem de o dizer na primeira pessoa e socorremo-nos de “ouvi dizer que…” ou “as pessoas acham que…”…

É a nossa própria humanidade que nos atraiçoa; mas nem por isso Deus deixa de nos amar, de nos querer bem e de nos considerar. Ele ama-nos tal como somos. Seremos capazes, enquanto Igreja, de O imitar acolhendo e considerando mesmo os que são diferentes? Serei eu, capaz de amar como Ele me ama?

A relevância da Igreja enquanto instituição joga-se sobretudo aqui, e o Papa sabe disso. Não se joga em regras ou preceitos nem no código de direito canónico, que sendo importante, como em qualquer instituição, não é o tudo da Igreja. Por isso, ele fala em “todos, todos, todos!”.  Todos têm lugar, independentemente das suas circunstâncias e todos serão considerados, como todos são amados por Deus.

No seu mais recente livro, “Peço-vos em nome de Deus. Por um futuro de esperança”, o Papa , citando Bertrand Russel, lembra-nos que está na hora de olhar e entender o mundo atual tal como ele é e não como gostaríamos que fosse.

Será assim tão fraturante?

 

 

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