A revolução de abril contada no jornal A União

Foto: Associação de Deficientes das Forças Armadas

Principal jornal da diocese, publicado em Angra, acompanha a par e passo o que se vai passando na república. Bispo de Angra está em Fátima quando se dá o 25 de abril e só regressa à diocese a 30 do mês por causa da interrupção dos transportes aéreos

A revolução de Abril de 1974, que este ano assinala 50 anos, apanhou o episcopado português reunido em Fátima, na Assembleia Plenária de abril, imediatamente interrompida para que os prelados pudessem regressar às suas dioceses, acompanhando localmente as comunidades e o desenrolar dos acontecimentos.

O bispo de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho, que haveria de ter um coadjutor em junho de 1974, D. Aurélio Granada Escudeiro, encontrava-se em Fátima e só regressou à região no dia 30 de abril, devido “à interrupção dos transportes aéreos” como noticia o jornal A União. Foi, de resto um dos dois bispos a chegar mais tarde à sua diocese depois de ter sido conhecido o ataque revolucionário das forças armadas, traduzido no próprio dia 25 de abril no jornal diocesano como “Golpe de Estado em Lisboa”.

Não se conhece nenhum pronunciamento público do bispo insular nos dias subsequentes ao 25 de abril, sobre o tema que foi amplamente escrutinado pelo jornal diocesano, com diferentes referências e análises ao momento político que o país atravessava. Mas, no dia 5 de maio, o principal diário diocesano publicava na íntegra o comunicado dos “Bispos da Metrópole”: “Sentimos com todo o povo os anseios e esperanças da hora presente e com ele nos empenhamos dentro da nossa competência na edificação de uma ordem social assente na Verdade, na Justiça, na Liberdade, no Amor e na Paz”.

Na diocese de Angra, como no continente, apesar do ambiente e da distância apresentarem modos de vivência da fé diferentes,  o desejo de mudanças foi acompanhado por vários elementos da Igreja Católica e embora ninguém da hierarquia se atrevesse a dizê-lo publicamente, havia sacerdotes e membros do laicado muito comprometidos socialmente e, por isso, muito alinhados com o espírito de mudança que pairava no país e que, de resto, granjeava muitos apoios junto dos mais novos que não queriam ir para a guerra ou que sentiam o seu futuro comprometido e, por isso, exigiam uma mudança.

“Houve quem perdesse a vida a lutar pela democracia e pela liberdade” referiu Santos Narciso, jornalista e cristão, na XII Conversa na Sacristia que decorreu esta terça-feira, em Ponta Delgada, mas a “maioria da Igreja viveu estes tempos de forma cautelosa e muito reservada”.

“A igreja foi sempre cuidadosa” referiu lembrando-se do alinhamento que a Igreja tinha antes com o poder político mas também o forte espirito conciliador que desenvolveu e ajudou a serenar os ânimos.

“Houve alguns padres que assinaram a declaração de Ponta Delgada, em 1969, promovida pela Comissão Cívica de candidatura” liderada entre outros por Melo Antunes e o padre Machado Weber e havia muita intervenção social da parte dos católicos, seja ao nível da reflexão seja ao nível da acção.

“Fui chamado à Pide por causa das intervenções que fazia reclamando os direitos sociais dos trabalhadores como o direito a folgas, direito a um salário justo, sobretudo das empregadas domésticas, ou da fábrica do açucar”, isto é, “fui chamado à Pide por defender o essencial da Doutrina Social da Igreja”.

“Este era o meu partido mas fiquei sozinho; a hierarquia não me apoiou” referiu em entrevista ao Sítio Igreja Açores o sacerdote mais velho da diocese.

“Vivi este dia com muito alívio”, disse ainda.

“Tivesse havido mais padres com esta determinação e as coisas teriam sido difentes”, enfatiza.

“Foi um tempo bonito e esperançoso” disse por seu lado Monsenhor José Constância a quem  o 25 de abril apanhou em Santa Maria.

 

O primeiro editorial que A União apresenta sobre o assunto, a 27 de abril , dois dias depois da revolução,  lembrava os feitos protagonizados pelo Estado novo, em termos de estabilidade económica, mas apontava a guerra ultramarina “como um problema que nos aflige” e que esperava o editorialista, pudesse ser resolvido pelos novos governantes que “virão animados dos melhores propósitos”, para logo, num texto ao lado lembrar que os “padres e a política” devem manter-se afastados.

Na altura, muitos sacerdotes recusaram-se a ir para capelanias militares nas antigas colónias por estarem alinhados com o papa Paulo VI e o seu discurso sobre os direitos dos povos colonizados que não caíu bem junto dos dirigentes nacionais que, nem sequer viram com bons olhos a vinda do papa por ocasião do cinquentenário das aparições de Fátima, na Cova da Iria. Houve um sacerdote açoriano, padre Arsénio Puim, que foi afastado por manifestar expressa e explicitamente a sua oposição à guerra colonial.

“Os presbíteros, que têm o direito de fazer a própria opção política(…) devem ter o máximo cuidado em evitar que a sua opção se apresente aos cristãos como a única legítima, ou então venha a tornar-se motivos de discórdia entre os cristãos”. Este texto publicado no dia 3 de maio de 74, apelava à participação e ao esclarecimento dos leigos, que deviam pugnar pela defesa de valores como a justiça. Há, de resto, nesse mesmo jornal, a publicação de uma declaração de principio por parte da Direção do jornal assegurada interinamente por José Machado Lourenço: “Atendendo à conjuntura presente da Nação e querendo estar em linha  com o nobre empenho da Junta de Salvação Nacional, que deseja e aconselha que o novo estilo de vida se processe dentro de toda a ordem e respeito  por todas as liberdades fundamentais concedidas e extensivas a bem da pacificação da família portuguesa e, notando que, por vezes,  nos enviam escritos para publicação que podem afectar a pureza das intenções e princípios que presidiram  ao Movimento das Forças Armadas; declaramos não aceitar qualquer colaboração que não seja pedida pelo jornal”, ainda assim houvesse pedidos de publicação de artigos que pusessem em causa os acontecimentos.

Aliás, segundo alguns investigadores, esta postura discreta e apaziguadora da Igreja Católica, no continente como nas ilhas, pode ter tido um efeito duplo: apaziguou os revolucionários cientes de que sem a oposição da Igreja a possibilidade de sucesso desta ação era maior, tal era o peso da instituição na sociedade portuguesa e, por outro lado, possibilitou que as correntes mais tradicionalistas não elevassem a voz.

Numa entrevista ao programa 70X7, da Agência Ecclesia, no primeiro dia deste ano, a pretexto de se assinalar o Dia Mundial da Paz, a presidente executiva da Comissão para as Comemorações do 25 de abril lembrava:  “Nós já tínhamos episódios de contestação, de criticismo do interior da Igreja para o regime salazarista e depois para Marcelo Caetano. Temos uma juventude católica, formada no seio da Igreja, militante nos movimentos da ação católica, que entra claramente em contestação com o regime; o apelo da Capela do Rato era a cristãos e não cristãos, era uma vigília pela paz, que era um assunto premente em Portugal e tem um significado muitíssimo importante”, desenvolveu Maria Inácia Rezola.

“Inevitavelmente, este papel da Igreja e dos católicos é uma peça importante dessa história que nos vai conduzir ao 25 de abril. A Igreja era e é uma Igreja no seu tempo, no seu mundo, mas também é evidente que havia uma óbvia ligação desde os anos 30 entre a Igreja e o regime”, salientou a entrevistada.

A professora universitária lembra que a Igreja Católica chegou ao 25 de Abril de 1974 com “o peso de estar associada à longa ditadura portuguesa”, mas também com uma “história de contestação, de resistência”, de setores minoritários que agora são fundamentais e que “servem de um certo conforto para os católicos em geral, nesse momento de rotura, de queda da ditadura”.

A comissária executiva lembrava que existe “uma série de figuras que são muito importantes nesta história”, e destacou a intervenção do padre Abel Varzim, que integrou a Assembleia Nacional, com uma “uma inquietação religiosa e social” que não é necessariamente “uma contestação na sua essência política”, o padre Manuel Rocha, o ‘caso do Bispo do Porto é o mais paradigmático’, D. António Ferreira Gomes, o padre António Janela.

“Nós vemos de norte a sul do país mobilizações, os cristãos pelo socialismo, aos cristãos em reflexão permanente, as assembleias de cristãos do Porto, de Lisboa, que contestavam a Igreja, que exigiam que a Igreja se retratasse do seu casamento com a ditadura, que pediam uma renovação, uma abertura aos ventos do Vaticano II”, indicou.

Mas, na verdade, percebe-se que esta adesão aos novos ventos, que sopravam já do tempo do Concilio Vaticano II e que foram reforçados pelas sucessivas intervenções do Papa Paulo VI, nomeadamente no discurso nas Nações Unidas, ou nas palavras do Congresso na India ou, ainda, das sucessivas audiências que manteve com líderes independentistas dos países com quem Portugal estava em Guerra, não era igual em todo o território.

No dia 6 de maio, de 1974, há um longo texto no jornal A União, com chamada de primeira página e que depois termina na página 4, intitulado “Erros em voga”, onde se denuncia uma certa “tentativa de fazer parecer entre os católicos que o próprio Cristo tinha sido um revolucionário” ou “agitador de multidões”.

“Jesus veio libertar-nos  da escravidão do pecado mas não teve em vista instaurar uma ordem política, social ou económica; a reforma que Ele veio pregar é a das consciências , que quando for sincera terá as suas repercurssões inevitáveis em todos os domínios da atividade humana”, esclarecia o articulista, que assinava com as iniciais P.S, que prosseguiu  com vários artigos aos longo das edições seguintes.

Daqui para a frente, este jornal vai sempre tentando compatibilizar a revolução, e os ecos de mudança, com um certo apego à tradição, mantendo-se fiel à Doutrina Social da Igreja e denunciando algumas questões levantadas pelo novo status quo contra a ideia do homem novo propalado pelos regimes comunista, como é o caso de um artigo publicado a 15 de maio, a pretexto dos 113 anos da Rerum Novarum, o primeiro grande documento da Igreja sobre as questões sociais, assinada pelo Papa Leão X: “condenados pela Igreja o comunismo e o socialismo” e, no dia seguinte, alertava-se para a “perigosa ilusão” . Mas, já no dia 22 de maio, o jornal dava espaço a uma longa entrevista a D. António Ribeiro, Patriarca de Lisboa, figura fundamental no posicionamento moderado da Igreja no pós 25 de abril, onde o responsável pela diocese de Lisboa dizia que os “sacerdotes não deveriam adoptar condutas reaccionárias”. O próprio jornal publicaria em Julho, em pelo menos três números a Carta Pastoral dos Bispos portugueses sobre o 25 de abril e as novidades sociais que implicava.

Na homilia de 17 de junho de 1974, data da sua entrada na diocese, o novo bispo coadjutor D. Aurélio Granada Escudeiro, refere apenas que o país está a sofrer muitas mudanças que chegarão aos Açores mas nunca menciona qualquer facto político.

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